terça-feira, 6 de outubro de 2009

Como eu 'Gamava' Comida na Casa Pia:

Porque dentro do Asilo Maria Pia todos andavam com fome, e penso que se passava o mesmo nos outros asilos da Casa Pia, havia em nós uma constante procura de alimentos. Eram utilizadas as mais variadas formas de angariar comida, fosse qual fosse a forma ou táctica, tudo servia. Cada um desenrascava-se da melhor forma que sabia ou podia. E cada um guardava para si aquilo que conseguia amealhar, porque se serviu para uma vez, podia servir para outra. Roubar comida não era nada de mal. Entre nós, era considerado um valente e muito admirado todo aquele que conseguia comida extra. Um dia alguém conseguiu roubar o lanche do director. Fomos todos castigados duramente durante alguns tempos mas ninguém se acusou pela simples razão de que quem o fez jamais abriu a boca a não ser para se regalar com o respectivo petisco. Era assim a vida. Tudo tinha que ser feito em segredo. Se caísse na tentação de se gabar, estava completamente perdido. Como já disse anteriormente, quando entrei no Maria Pia puzeram-me na Oficina de Serralharia. A única coisa que aprendi a fazer foram chaves. Naquele tempo ainda não havia as chaves que hoje utilizamos. Eram grandes, quase todas com mais de 10 centímetros de comprimento. E pesavam. Como se pode imaginar era impossível andar com tanto peso connosco. Por isso eu guardava as chaves dentro de vários canos de esgotos. Era o local mais seguro mas muito difícil de lá chegar porque eu estava sempre com medo de que alguém me seguisse. Felizmente tal nunca aconteceu porque eu tomava muitas providências. O meu melhor truque era escalar um ou dois muros antes de pegar as chaves. Se alguém me seguisse era certo e sabido que eu via. Alguns tentaram fazê-lo mas desestiam ao segundo muro. Subir e descer muros era relativamente fácil para as crianças da nossa idade, mas eu era um escalador nato. Era muito difícil alguém conseguir acompanhar-me. Mas se alguém conseguia então era eu que desistia. Tácticas. Eu tinha tido uma boa escola, lá na terra, quando vagueava pelas ruas antes de vir para a Casa Pia. Então, acontecia que junto da cozinha, na copa onde nós lavávamos os pratos, havia uma arrecadação que só servia para guardar os pratos, as canecas e os talheres tudo de alumínio. Se por acaso havia alguém que por qualquer motivo tinha falhado uma refeição a sua comida nunca era deitada fora e muito menos se dava a alguém. Essa comida era guardada dentro dessa arrecadação. Nunca compreendi porquê mas só a deitavam fora quando começava a cheirar mal. Quando me calhava a mim a ter de lavar tantos pratos compreendi toda a mecânica e então, certo dia, resolvi fazer uma cópia desta chave. Aliás, duas chaves, porque para lá chegar tinha que passar ainda por outra porta. Felizmente o local era muito escuro e eu podia-me chegar à porta com muita facilidade. Cada chave tinha um código gravado na própria chave para eu poder identificar cada uma. Eu abria quase todas as portas dentro do asilo. Quando pretendia ir a algum lado tinha que estudar a situação dos horários, dos costumas e das pessoas que frequentávam esse local. Eu gostava muito de ler romances policiais onde se aprendiam estas técnicas. Eu actuava sempre sózinho a agia sempre premeditadamente. Para entrar na tal arrecadação onde estava a comida eu só precisava de saber se naquele dia havia lá comida. Era raro o dia em que não havia. Neste caso, eu tratei de simplificar ao máximo a minha entrada. Como todos os dias tinha fome, quase todos os dias eu lá entrava. Mas tomava as minhas cautelas. Por exemplo, jamais mexia na comida se só houvesse um prato com comida. Isso chamaria a atenção no dia seguinte. Mas quando havia 5 ou 10 pratos de comida então mais um menos um seria difícil dar por ela. Mesmo assim, eu ainda fazia outra coisa. Tirava um pouco de cada prato e ninguém dava por nada.Já imaginaram a confusão que não seria se eu viesse acompanhado? Mesmo no lado de fora da porta havia um tubo na parede meio esfolado e rôto. Com a ajuda de um arame pendurava as chaves pelo lado de dentro do tubo. Estiveram lá durante anos enquanto serviram os meus propósitos. Porque eram as chaves que mais utilizava tive que arranjar este esconderijo muito perto da porta para não perder tempo. Aquela torre que faz parte da fachada da Igreja da Madre de Deus, muito antes de ser arranjada já eu subia lá acima e guardava nela muitas chaves. Não era fácil chegar lá e penso que, pelo menos no meu tempo, não havia ninguém que lá fosse a não ser eu. Precisamente por ser difícil é que eu a considerava um esconderijo perfeito. Mesmo que o sacristão lá fosse de vez enquando não veria nada porque o buraco estava do lado contrário e visto de cima era impossível ver o buraco.
E assim ía subrevivendo.

domingo, 4 de outubro de 2009

Barcos Tradicionais do Tejo:




Barcos Tradicionais do Tejo.
Varinos e botes de fragata fazem parte da grande família de barcos do Tejo, bem como as fragatas, catraios, faluas, canoas, muletas, enviadas e botes de tartarenha, entre outros tipos de embarcações.
Consoante as suas características construtivas e a sua armação, uns destinam-se ao transporte de mercadorias e de passageiros, outros à pesca, tendo em comum uma íntima relação com as condicionantes do próprio estuário e da barra do Tejo, onde navegam e eram instrumentos de trabalho das comunidades ribeirinhas.
A marca de identidade cultural ligada ao estuário do Tejo, é sem dúvida a decoração das embarcações. Os próprios arrais ocupavam-se de manutenção do seu barco, mas em certos períodos e em ocasião de festas o artista decorava-o, criando composições com motivos naturalistas e geométricos, por vezes representando figuras de inspiração local.
Os botes de fragata, actualmente designados por Amoroso, Gaivotas e Baía do Seixal foram adquiridos e recuperados pela Câmara Municipal do Seixal. Conservados e reutilizados como barcos de recreio, tornaram-se importantes recursos culturais e promoção da actividade turística.
Lembro-me de quando se olhava para o Tejo só se viam barcos. Barcos com velas. Havia barcos por todo o lado no rio. Parecia uma avenida com muito trânsito. Hoje quando olhamos para o rio é diferente, o que não admira porque os barcos são todos diferentes de antigamente. A maior diferença que eu verifico são as velas. Ou melhor, a falta delas. Naquela época, em terra só se viam carroças, cavalos e burros e no rio também só se viam barcos à vela. E parece-me que o rei dos barcos, naquele tempo, era a fragata à vela. É dela que eu mais me recordo. O Maria Pia, dantes, não ficava muito longe do rio. Quero dizer, a distância continua a ser a mesma mas naquele tempo podiamos andar directamente para o rio. Agora temos que dar muitas voltas. Há avenidas, o caminho de ferro e o porto. Tudo isto já existia mas ninguém nos travava o caminho. Agora as avenidas estão protegidas por causa das velocidades e o porto por causa dos intrusos. Há muitos obstáculos que não havia dantes. Por vezes, saltávamos o muro e íamos até ao cais onde estavam as fragatas carregadas com amendoins que vinha das colónias. Vinham a granel. Não havia embalagens. Ainda não estava pronto para ser comercializado. Aproveitávamos enquanto os marinheiros íam almoçar. Nornalmente faziam uma fogueira e cozinhavam ali mesmo o peixinho que apanhavam pelo rio acima. Os porões estavam carregados de amendoins e uma das brincadeiras que nós mais gostávamos era dar saltos para dentro do mar de amendoins. Não íamos tanto pelos amendoins mas mais pelas brincadeiras. Até porque os amêndoins estavam crús e um amendoim crú é quease intragável. Se nós levássemos os amendoins para o asilo era preciso torrá-los e isto significava duas coisas. Tinhamos que dividir a nossa porção com os cozinheiros e estes ficavam a saber que tínhamos dado o salto. Não convinha nem uma nem outra. Por isso arrajámos uma solução. Enquanto os marinheiros comiam nós brincávamos e quando eles acabassem nós já estávamos prontos para aproveitar o borralho. Era um óptimo passeio. O grande problema era que nós nunca sabíamos quando havia amendoins. Às vezes íamos lá e as cargas das fragatas eram outras. Quando isso acontecia todos nós nos sentávamos no cais muito tristes, apreciando o navegar das fragatas, o voo das gaivotas ou ouviamos as histórias dos marinheiros mais velhos que já não podiam trabalhar mas que ainda podiam olhar as águas do rio com muitas saudades. É assim que eu me lembro do Tejo, e de tanta história ouvir, no dia da Revolução dos Cravos estava eu numa Companhia de Navegação na Av. 24 de Junho, em Lisboa, a tratar do meu primeiro embarque a bordo de um navio de cruzeiros no Mediterrâneo. O primeiro de muitos e de muitas voltas ao mundo. Embarquei em Lisboa, pela primeira vez, em 2/6/1974 no navio 'Tss Fairstar' rumo a Southampton em Inglaterra.

O Diploma da 4ª Classe da Casa Pia:

Este diploma tem passado as 'passas do Algarve'. Foi uma trabalheira para conseguir tirá-lo. Alguns anos depois de ter saído da Casa Pia houve por lá uma remodelação que atirou com os registos dos exames para outras escolas das redondezas. Quando em 1970 precisei de tirar a Carta de Condução não sabia onde estava o livro com o registo do meu exame. Na véspera de fazer exame ainda eu calcorreava Lisboa procurando. Mesmo à última da hora consegui saber que o tal livro talvez tivesse ido para a Escola da Picheleira. A Picheleira fica por detrás do Cemitério do Alto de S. João. Nunca eu tinha estado na Picheleira e para lá me desloquei. Não foi fácil. O tempo corria e eu enervava-me. Naquele tempo eram só descampados e fui encontrar a Escola num vale perdida no meio do nada. Felizmente a professora que me atendeu foi muito simpática e só a sua boa vontade é que permitiu encontrar o dito livro numa arrecadação muito desarrumada. Entreguei o diploma mesmo ao fechar da porta, mas consegui fazer o exame e passei. Depois, durante muitos anos andou perdido. Quando mudei de casa encontrei-o. Mudar de casa tem certas vantagens. Primeiro porque a gente só se apercebe do lixo que todos os dias carregamos para casa quando temos que tirar tudo, separar e jogar fora o que não interessa. Depois porque se encontram coisas de que já não nos lembrávamos e outras que nos deixam surpreendidos por ainda existirem. Foi o caso do Diploma. Encontrei-o e fiquei contente. Mais anos passaram e voltei a perder-lhe o rasto. A última vez que mudei de casa tive que deitar fora mais de 500 livros que se estragaram na cave do prédio onde morava. Felizmente lá estava o Diploma vivinho da silva. Agora, depois de reformado, aprendi a manejar um computador e tratei logo de o digitalizar. Assim já não me foge. E ajuda-me a refrescar a memória das velharias encontradas.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Os Surdos-Mudos da Casa Pia:

O Decreto n.º 1522, de 21 de Abril de 1915, modifica o regime de aceitação de surdos-mudos na Secção da Casa Pia de Lisboa para esse fim, até aí apenas destinado aos moradores na cidade de Lisboa e define a existência de um semi-internato de 30 lugares em exclusivo para alunos pobres domiciliados em Lisboa e que permite o preenchimento para lugares de internos a candidatos domiciliados noutros distritos do País que não o Porto onde existia instituição congénere. Em 10 de Maio de 1919 a instituição recebe autonomia técnica, financeira e administrativa.
Na Casa Pia de Lisboa, Sousa Carvalho acompanha e dinamiza um conjunto de experiências inovadoras, assumindo-se claramente como um adepto dos "métodos globais". Em 1929, publica Elementos de Ortofonia, que tem como subtítulo "Defeitos da voz e da palavra e o seu tratamento pedagógico nos indivíduos normais e anormais", no qual sustenta que "as perturbações de pronúncia colocam o indivíduo não só em manifesta inferioridade social e em atraso intelectual, como afectam quase sempre o seu carácter" (1929, p. 281). Por isso, "os defeituosos da pronúncia têm o direito de exigir do Estado um pouco da sua atenção para um assunto que há muito vem preocupando quase todos os países" (1929, p. 283).
Os Surdos-Mudos na Casa Pia faziam parte do nosso quotidiano. Os falantes não se davam muito bem com os surdos-mudos nem os surdos-mudos com os falantes. Mas tudo isto tinha uma razão de ser. Os surdos-mudos eram uma minoria embora fossem muitos. O ensino especial para eles era muito fraquinho. Quase que só os ensinavam a saber escrever e pouco mais. Os precetores, os professores e o pessoal do asilo tratavam tudo por igual. Não sabiam lidar com eles. Posso até dizer que os alunos falantes ainda eram quem melhor sabia lidar com eles apesar das desavenças. Quase todos nós sabiamos a linguagem gestual porque todos nós viviamos juntos e as crianças têm o dom de se adaptar e aprender tudo com relativa facilidade. Porque não conseguiam ouvir nem falar eram muito desconfiados visto que nunca sabiam o que se estava a dizer e porque todos éramos crianças as troças e brincadeiras eram constantes ao ponto de nos pegarmos. Os funcionários do asilo não sabiam a linguagem gestual excepto os professores deles mesmo assim só esses é que sabiam de maneira que quando era preciso qualquer coisa era a nós que recorriam e como nós tinhamos a faca e o queijo nas mãos moldavamos sempre a situação a nosso favor deixando-os furiosos. Por aqui se vê que as suas vidas no asilo eram muito mais complicadas. Se as nossas já eram más agora imaginem as deles.Por isso os surdos-mudos dentro do asilo eram uma minoria completamente isolada e triste. Até na igreja eles eram discriminados. Como não falavam nem ouviam a igreja recusava-se a ouvi-los em confissão mas obrigavam-nos a ir à missa como todos nós. Nós ainda 'sentíamos' o ambiente da igreja mas eles nem isso. Quando chegava a altura de sair da Casa Pia os surdos-mudos estavam melhor preparados para enfrentar a vida civil do que nós embora também tivessem muitas dificuldades. Mas tinham um método diferente. Enquanto nós podiamos ser completamente independentes desde que arranjassemos um emprego eles procuravam sempre o apoio de outros surdos-mudos que já viviam cá fora hà mais tempo. Formavam um comunidade que se ajudava mutuamente. Além disso, antes de saírem do asilo, eles procuravam especializar-se ao máximo nos seus ofícios. Sabiam que tinham que ser melhores para poderem sobreviver. Nós não ligavamos muito a isso. Alguns não ligavam, mas eu aprendi isso com os surdos-mudos. Por isso me apliquei na Escola de Hotelaria que vinha aí...

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Querer Estudar na Casa Pia:

Quando eu tinha uns cinco anos deve ter sido por essa altura que começei a querer aprender a ler. Tanto que consegui ir aprendendo mesmo sem ir à escola. O meu irmão tinha uma madrinha que era "ama". E cuidava de uma catrefa de miúdos para amealhar mais uns cobres. A Dª Fernanda, era a sua graça, tinha por marido um homem conhecido por "Pichelau", era a sua alcunha, mas para nós era o Sr. Manel. Eram duas pessoas com um coração do tamanho do mundo. Estas duas pessoas sempre me encentivaram a aprender a ler e escrever. Não se limitavam a encorajar-me. Eles começaram a ensinar-me. Como a Dª Fernando tinha uma espécie de "creche", cuidava de crianças de várias idades, eu era mais um. Para entreter aquela malta toda e também para os conseguir manter ocupados ela ensinava toda a gente a ler e escrever com a ajuda do marido. Eu nunca andei na 1ª classe. Eu era filho da rua, embora tivesse família não era fácil controlarem-me, quanto mais tempo passasse nas ruas menos incomodava em casa. Mas eu tinha um fraco pela casa da Dª Fernanda. Eu não fazia parte da sua "creche". Eu era apenas um amigo e irmão do seu afilhado. Lá, eu acalmava porque gostava de aprender. Então começei a passar lá muito tempo. Mas éramos muito pobres. O meu pai morreu com 33 anos devido a tubercolose arranjada numa oficina de tipografia. O meu pai era compositor-tipógrafo e trabalhava à porta fechada como todos os outros. Naquele tempo as tintas eram muito tóxicas e só depois de morrer o 3º é que foi permitido abrir as janelas. A minha mãe viu-se com 5 filhos nos braços e teve que se desfazer deles. Três deles foram aprefilhados por outras pessoas da família. Só restámos dois. O meu irmão era o mais velho e já trabalhava na mesma tipografia onde passou toda a vida. Como a mim ninguém me queria porque era um vadio, resolveram meter-me na Casa Pia. Eu tinha a condição principal para entrar na Casa Pia. Era órfão. Naquele tempo a Casa Pia era só para órfãos. Com as "cunhas" certas eu consegui entrar. E quando lá entrei perguntaram-me em que classe andava lá na terra. Como eu não era parvo e já sabia ler mais ou menos disse logo que andava na 2ª classe. E na 2ª classe me colocaram. Por isso nunca andei na 1ª classe. Mesmo assim eu já ía atrazado e não chumbando nenhum ano até à 4ª classe quando lá cheguei já não tinha idade para ir para Asilo Pina Manique, que era a única hipótse de continuar a estudar e fui parar ao Asilo Maria Pia onde só se aprendiam profissões de "ferrugem", as tais em que se tinha que sujar as mãos. Durante anos revolvi tudo para continuar a estudar e nada. Depois da 4ª classe ainda podiamos estudar mais dois anos. Chamavam-lhe Curso Complementar Primário. Eu também o fiz mas não servia de nada. Não tinha equivalência para nada. Mesmo quando fui para a tropa, numa altura em que o País estava em guerra e eram precisos muitos quadros superiores tudo era facilitado mas o meu curso não era conhecido e por isso não tinha qualquer validade. Foi quando compreendi que nos mantinham naquele curso apenas para nos manterem ocupados. Falei com toda a gente dentro da Casa Pia e ninguém estava disposto a deixar-me estudar. Todos me escorraçavam e cheguei mesmo a levar alguns pontapés no cú para se verem livres de mim. Um dia meti na cabeça que se eu podesse ser transferido para o Pina Manique então lá eu poderia estudar. Mas era impossível. Ninguém parecia interessado. Hoje cheguei à conclusão de que nunca falei com as pessoas certas o que não admira porque os verdadeiros chefes nós nunca os víamos nem sabiamos que eles existiam. Para nós só havia um director e que nós pensávamos que era o mais alto cargo dentro do asilo afinal não passava apenas de um chefe de serviços. Só muitos anos mais tarde é que vim a saber o que era um Provedor. É que nós nunca o víamos. Entrava de carro, enfiava-se no gabinete fora da nossa zona de circulação e saía de carro. O seu carro era o único automóvel que entrava dentro do Maria Pia. Mas mantinham-no sempre fora do nosso alcance mas não da nossa vista pelo que era muito apreciado por nós porque era um motivo de mistério. Naquele tempo automóveis não faziam parte da nossa visão. O máximo era a camioneta que trazia os víveres do mercado ou o velho autocarro. Nada mais. Das poucas janelas que davam para a rua pouco se via porque naquele tempo imperavam as carroças e cavalos, raramente se via um automóvel. O tempo foi passando e eu não conseguia estudar de maneira nenhuma. Até que um dia abriu em Lisboa a primeira Escola Hoteleira...

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Livros da Escola Primária na Casa Pia:

Uns tempos antes de falecer a minha mãe fez questão de que eu ficasse com os meus livros escolares. No livro da 2ª classe tem escrito por mim a lápis a data de 1 de Novembro de 1951. Apenas estes dois chegaram até hoje e era ela que fazia questão de os guardar. Os meus livros primários eram distribuídos pela Casa Pia porque era lá que eu vivia. Quando terminávamos o ano podiamos ficar com eles. Embora os livros fossem propriedade da Casa Pia e embora servissem para outros noutros anos a verdade é que cada um podia ficar com os seus livros. Ainda hoje me pergunto porquê e só vejo uma explicação. Quem fornecia os livros à Casa Pia tinha necessidade de vender. Isto explica tudo porque na Casa Pia não costumava existir tanta compaixão fosse pelo que fosse, a não ser que houvesse interesses. Cada livro da 2ª Classe custava naquele tempo 14 escudos e o de História 32$50. Hoje, ao folhear estes livros sinto umas saudades daquele tempo em que a vida era tão difícil como é hoje. Nada mudou. Tudo continua na mesma. É certo que os anos passaram e a maneira de viver é muito diferente. O conforto é maior mas de resto está tudo na mesma. O Homem foi à Lua mas o que é que ganhou com isso? Nada. A fome continua e o Planeta está a morrer porque estamos a dar cabo dele. Com a minha idade só penso numa coisa. Espero que o Homem nunca consiga por os pés fora do planeta que habitamos. Porque? Porque no dia em que o conseguir será o princípio do fim da Galáxia. E depois outras se seguirão a não ser que qualquer outra raça noutro qualquer planeta consiga extreminar esta praga que somos todos nós. Acham que sou pessimista? Não. Apenas vejo que somos uma raça cuja finalidade é a destruição de tudo em que tocamos. Não sou católico mas se fosse eu acreditava no céu, no purgatório e no inferno. Acho que tudo isso fica aqui na Terra. Basta ver como cada um nasce. Uns em berço de ouro, outros numa estrumeira. Uns são ricos outros são pobres. Uns são meio-ricos e outros são meio-pobres. Por isso todos pagam cá as suas culpas. Lá diz o ditado: "Cá se fazem, cá se pagam". Mas ainda há outro, mais religioso: " Quem com ferro mata, com ferro morre". Por isso, provávelmente, quando eu fechar os olhos é sinal de que já paguei tudo o que devia. Será?
Uma das coisas boas desta vida é a leitura. Por isso estes livros me dizem muito. Foi neles que aprendi mas talvez não tenha aprendido o suficiente. Isso importa?

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Férias no Forte de S. Pedro do Estoril:




Forte de São Pedro do Estoril: brasão de armas.
Integra a linha de fortificações erguida entre 1642 e 1648 por determinação de D. António Luís de Meneses, governador da Praça-forte de Cascais, no contexto da Guerra da Restauração, e que se estendia entre São Julião da Barra e o Cabo da Roca.
De acordo com a inscrição epigráfica sobre o portão de armas, as suas obras iniciaram-se em 5 de Abril de 1642, concluindo-se no ano seguinte.
Embora atualmente se encontre descaracterizado, os seus traços originais podem ser reconstituídos através de planta levantada por Mateus do Couto em 1693, onde se constata que era em tudo semelhante ao Forte de São Teodósio, embora as dimensões sejam "ligeiramente superiores".
Desactivado no século XIX, passou por diversas tutelas que, nas diferentes épocas, deram-lhe distintas utilizações. No século XX, em 1954, foi utilizado como Casa de Chá e, a partir de 1957 foi arrendado a um particular, passando a albergar um restaurante, o que levou a "múltiplas transformações e acrescentos".
Foi classificado como Imóvel de Interesse Público através do Decreto nº 129 de 29 de Setembro de 1977. Actualmente funciona como uma discoteca.
Não sei a quem pertencia o Forte na década de 50 do século passado mas sei que devia ter algum contacto com a Casa Pia visto que nós costumávamos ir lá passar as férias grandes. Era uma casa de freiras, eram elas que tomavam conta de nós enquanto lá estávamos, por sinal muito bem arranjadinho e as camaratas cada uma tinha a sua cor. Como é um Forte pequeno não levava muita gente por isso a mim só me calhou uma vez a ir para lá. Isto no tempo em que a Praia da Poça era quase deserta. O grande movimento daquele tempo era a Praia do Tamariz, ali mesmo ao lado e como ainda não havia ligação entre as duas praias tornava-a muito mais sossegada. Lembro-me que havia uma mina de água mesmo junto ao Forte e quase no calçadão que já existia um bocado. A grande maioria das pessoas que aqui vinham era por causa da água muito fresquinha e limpa. Parece-me que hoje está fechada ao público, nunca percebi porquê. A praia era tão sossegada que as freiras conseguiam controlar toda a malta do cimo do calçadão. Naquele tempo o areal não era muito grande porque havia muita rocha o que era mais excitante para nós porque as rochas eram muito rasteiras o que nos permitia explorar à vontade os seus buracos. Ainda me lembro que a excitação principal é porque uma vez vimos um pescador meter a mão num buraco e tirar um polvo der lá. Aquilo deu conversa para o verão todo. Todos queriam experimentar mas todos tinham um medo danado. Dentro do Forte não tínhamos espaço para brincar, as freiras sabiam disso e resolveram o problema deixando-nos brincar na praia quase todo o dia. À noite estávamos tão cansados que adormeciamos assim que caíamos na cama. Estas foram as melhores férias de todo o período em que estive na Casa Pia, porque não tive outras. Mas se tivesse tido provávelmente ainda seriam as melhores.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A Divisão dos Pães na Casa Pia:

Como já vimos noutras histórias anteriores, o pão era a base da alimentação na Casa Pia. Era também o princípio da discórdia pois grande parte das discussões começavam por causa dele. Não admira pois já diz o ditado: "Casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão". Na realidade comíamos muito pouco pão. Aliás, comíamos pouco de tudo. E muitas coisas nem sequer as víamos, como por exemplo o leite. Nunca bebi leite na Casa Pia, à excepção dos últimos tempos depois de o Governo passar a controlar a Casa Pia, devido à roubalheira descarada dos seus empregados. Durante muito tempo eu fui ajudante voluntário do encarregado do depósito do pão. Este encarregado também já tinha sido aluno e era um dos tais que não tinha capacidade para se governar sósinho pelo que ficou lá dentro trabalhando. Ao tornar-me seu amigo
eu aliviava-lhe as costas e ele recompensava-me com um pedaço de pão. Era um acordo de sobrevivência. Eu tinha que carregar o pão da padaria para o depósito que devia ficar a mais de 300 metros. Depois era preciso cortar o pão de maneira que chegasse ao refeitório pronto para ser distribuído pelos alunos. Ao pequeno almoço, um pão como o da foto acima era cortado em quatro partes a que dávamos o nome de "um quarto". Ao almoço e ao jantar o mesmo pão era agora cortado em 8 partes. Demasiado pequeno para as energias gastas por uma criança. Para cortar o pão utilizávamos a faca do bacalhau que estava pregada à mesa, porque era mais rápido que a faca. Foi uma invenção minha que me facilitou entrada no depósito. Normalmente ao pequeno almoço além do pão tinhamos umas papas de milho que só a fome nos fazia comê-las pois nem sequer eram feitas com leite ou açúcar. As papas eram apenas cozidas em água. Assim uma espécie de "xerém" sem nada. O Xerém é um prato típico de Olhão onde eu vivo. Xerém com Conquilhas é o prato favorito da minha mulher que é natural daqui, mas eu não consigo comê-lo não porque não goste, mas porque lhe tenho raiva. E além do pão e das papas serviam-nos um copo de uma água suja a que chamávam café. A cor era disfarçada pela adição de leite em pó, muito em voga naquele tempo, mas tão fraquinho que se tornava repugnante. Também não bebo café. De pequeno almoço às 8 da manhã era tudo. Só voltaríamos a comer ao almoço que era composta por dois 'caços' muito pequenos de sopa. Para quem não sabe um 'caço' é o mesmo que uma concha, só que o 'caço' tem a pega direita e a concha tem a pega inclinada. O 'caço' é mais um utensílio de cozinha, mais próprio para ir até ao fundo de uma panela. A concha é um utensílio de sala, mais próprio para servir sopa de uma terrina. Mas era um 'caço' que nós utilizávamos para servir a sopa. Na gíria do asilo um 'caço' também significava um 'murro', ou um 'soco'. O refeitório era composto por mesas de pedra com 18 alunos cada mesas. Nove de cada lado. Em cada mesa havia um chefe, que se sentava sempre ao meio da mesa. Era ele quem distribuía a comida por todos os 18 que vinha da cozinha em travessas ou terrinas religiosamente medidos ou contados. Toda a loiça por nós utilizada era de aluminio já muito amachucada. O almoço era quase sempre peixe cozido. Em culinária, o peixe cozido é o prato mais fácil e que menos trabalho dá além de não precisar de muita atenção. Por isso era o prato típico da Casa Pia. Vinha da cozinha uma travessa com 18 postas de chicharro, era quase sempre chicharro, só mudava em dias de festa. Vinha outra travessa com 18 batatas cozidas. E vinha também uma tigela com azeite e vinagre já misturado. O chefe de mesa tinha que distribuir por todos uma posta de peixe, uma batata e uma colher de azeite. Se se alargasse um pouco mais era ele que se lixava visto que era sempre o último a ser servido. Mas lá diz o ditado "Quem parte e reparte fica sempre com a maior parte". Era aqui que todos os dias se arranjavam problemas. Porque me deste a posta mais pequena ou porque o azeite só tinha vinagre ou por outra coisa qualquer todos os dias havia zaragatas. Mas as zaragatas só se manifestavam no recreio. Dentro do refeitório ninguém abria bico, porque quem o fizesse ía imediatamente lavar pratos, tivesse ou não razão. Era assim que os preceptores impunham a disciplina. Ao almoço era ainda distribuído um 1/8 de pão e duas vezes por semana tinhamos um pero ou uma maçã, como lhe quizerem chamar. Nunca me lembro de ter comido outra fruta diferente. E de almoço era tudo. O jantar era igual, sem fruta. Só que ao jantar era quase sempre um guisado de vaca ou semelhante. Assim comíamos durante anos e anos. Só mudava em dias de festa. Mas atenção que as mudanças eram mais para os olhos do que para a barriga. Em vez de chicharro cozido tínhamos peixe-espada frito, em vez da maçã tínhamos uma pêra. Alguns rebuçados cujos papéis de celofane eram maiores que o próprio doce eram colocados dentro de cada prato antes de entrármos no refeitório. É claro que as coisas melhoravam um pouco mais se houvesse alguma personalidade importante a visitar as instalações do asilo. Mas de uma maneira geral era assim que nos alimentávamos. Isto era o que o asilo nos dava, porque depois havia uma guerra diária de mil e um estratagemas a aplicar por todos nós para arranjar algum suplemento.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O Meu Primeiro Negócio no Maria Pia:

Um belo dia a veneta deu-me para montar um negócio. Já andava com ela fisgada já há uns tempos. O problema é que não tinha dinheiro. Mas noutro belo dia a solução veio ter comigo. Então não é que a minha querida avózinha materna me veio vistar. Não sei como é que ela conseguiu, mas não deve ter sido nada fácil para ela. Largar a casa, a horta, os animais, a padaria (era o negócio do meu avô) e meter-se sózinha na camioneta fazendo 120 kms até Lisboa, naquele tempo era obra. Tanto mais que ela não sabia onde ficava o Maria Pia. Uns anos atrás ela tinha-me entregue à Casa Pia em Belém e agora eu estava em Xabregas. Mas ela não era mulher para ter medos e a verdade é que enfrentou tudo e todos e conseguiu encontrar-me. Ainda hoje faz confusão a toda a família como é que uma mulher que sempre viveu numa aldeola, sem saber ler se meteu numa aventura daquelas. As saudades fazem destas coisas. E em dez anos de Casa Pia foi a única visita que tive. Nessa visita ela deu-me uma moeda de 25 tostões, ou seja, dois escudos e cinquenta centavos (2$50). Para começar o meu negócio eu precisava de ter 29 tostões (2$90). Portanto, faltava-me precisamente 1 cruzado, ou seja, 4 tostões (0$40). Não era fácil arranjar o que faltava mas consegui arranjar um financiador com juros de 100%. Pedi 4 tostões emprestados e tive que pagar 8 tostões. Mas valeu a pena. E agora vamos ao negócio. Era vender tabaco. Eu precisava de comprar um maço de cigarros. Na época o tabaco que a malta mais gostava lá no asilo era o 'Paris'. Um maço de cigarros que já não existe. É claro que eu podia comprar um maço de 'Provisórios' ou de 'Definitivos' mas não era a mesma coisa. Eram tabacos muito rascas, mesmo para nós. É engraçado que me estou agora a lembrar que naquele tempo circulava um dito, muito popular, sobre estes tabacos que dizia assim: "Mais vale fumar Definitivos provisóriamente do que fumar Provisórios definitivamente". Os trocadilhos eram muito populares nestes tempos. Hoje já ninguém tem tempo para graças. Ora cada maço de tabaco tem 20 cigarros, ainda hoje é assim. É engraçado que os ingleses quando pedem um maço de tabaco dizem sempre: Dê-me 20 cigarros desta ou daquela marca. Se eu vender cada cigarro por 2 tostões, ou uma metade por 1 tostão no final eu tenho 40 tostões (4$00). Quer dizer que ganhei 11 tostões (1$10). Logo no primeiro maço deu para pagar os 8 tostões ao agiota e ainda fiquei com dinheiro para voltar a comprar outro maço e guardei 3 tostões- Este foi o meu primeiro negócio. O tabaco era muito vendável e isto sempre me fez muita confusão. Andava tudo esfomeado e andava tudo 'teso', como é que havia dinheiro para o tabaco é que eu não sei. Ainda hoje assim é. Nestes tempos de crise, há muita falta de tudo por aí, mas dinheiro para o tabaquinho, aparece sempre. Devido a este meu negócio também eu começei a fumar mas quando casei vi que não conseguia suportar esta despesa. Deixei de fumar há quase 40 anos.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A Banda Desenhada na Casa Pia:

A Banda Desenhada foi o meu principal professor. Atravéz dela aprendi a ler melhor. Posso mesmo dizer que a BD era a única maneira de absorver um pouco da miserável cultura que durante os 10 anos de Casa Pia esta me proporcionou. Recordo-me muito bem que quando pegava num livro de BD eu entrava noutro mundo. Normalmente ía para o mundo das histórias. A minha preferida era o Flash Gordon e o Buck Rogers de Alex Raymond (1909-1956) que era o seu autor. Eram aventuras de ficção cientifica. Entrava num mundo completamente diferente. Tudo era irreal e fascinante. Já naquele tempo eu tinha prefeita noção do que era real e do que não era. Mas isso não impedia que eu me deixasse levar para mundos diferentes e fantásticos. Depois vinha o Tarzan. O admirável mundo das selvas e animais selvagens prendia-me completamente a atenção. Eu até sabia que as histórias eram escritas por Edgard Rice Burroughs (1875-1950) e que o nome vinha da sua quinta que se chamava Tarzana. Depois vinha o Fantasma, criatura muito misteriosa e o Mandrake, o mágico que encantava com os seus truques, ambos de Lee Falk (1911-1999). Enfim, os heróis eram tantos e estavam sempre a aparecer outros novos. O grande problema era conseguir arranjar revistas de BD. Problema porque não tínhamos dinheiro e a Casa Pia era tão fechada a leituras que até o jornal velho do sr. director, quando o deitava fora já havia muitos alunos a disputar as suas folhas. Mas havia algumas artimanhas para se conseguir alguma BD. Uma delas era nos Restauradores. Chegávamos a saltar o muro do asilo e ir a pé até à Baixa de Lisboa, ainda é um bom esticão, só para conseguirmos a BD. Junto ao Cinema Eden, nos Restauradores, há um beco sem saída onde um certo individuo tinha uma banca no chão só de BD e cromos. Os cromos, só muito mais tarde, quando apareceu As Raças Humanas é que se começou a desenvolver os Cromos de Futebol. A BD era ali vendida ou trocada, especialmente trocada, naquele beco. Creio que ainda hoje lá está. A solução era simples. Quantos mais fossemos, melhor, porque na confusão sempre conseguíamos 'gamar' alguma coisa. Usávamos o mesmo sistema noutros quiosques da cidade. Nenhum de nós gostava de fazer aquilo e só fazia isto quem gostava de ler. Mas era a única maneira de lermos alguma BD. As bibliotecas ainda só tinham volumes de clássicos e naquele tempo não nos passava pela cabeça entrar numa. Nem sequer sabíamos o que era uma biblioteca. Na casa Pia não havia nenhuma e se havia eu nunca vi. Um belo dia enganei-me e roubei um livro pensando que era BD e saiu-me o Miguel Strogoff de Julio Verne (1828-1905). Tinha descoberto os romances. Creio que foi o primeiro romance que li na vida. Mais tarde, ainda na Casa Pia consegui ler O Crime do Padre Amaro, livro proíbido na altura e que voltaria a lê-lo na Guiné, ainda proíbido. Creio que não devia haver no Maria Pia aluno que não tivesse lido este livro, mesmo os que não gostavam de ler. Voltando à BD, eu arranjei outra maneira de ler BD. Na Casa Pia sempre houve alguns empregados que por diversas circunstâncias não conseguiam sair da instituição. E como a instituição não tinha outra forma de resolver o problema estes passavam de alunos a empregados. Um desses empregados, que por sinal era surdo-mudo, havia muitos na Casa Pia, era um óptimo sapateiro mas muito reservado. Tão reservado que era quase impossível falar com ele. Estava sempre sózinho e não ligava a ninguém. Creio que a sua única companhia era a BD. E eu sabia que ele gostava de BD e também sabia que tinha tantos livros que era uma autêntica biblioteca, só que não era fácil chegar até ele. Ele gastava grande parte do seu salário em BD. Comia e dormia dentro, poucas necessidades tinha. Então descobri que havia uma forma, mas levava tempo e paciência. Felizmente eram duas coisas que eu tinha com fartura. O que eu não tinha era dinheiro, mas consegui dar um jeito. Sorrateiramente começei a mostrar-lhe o último número do Cavaleiro Andante ou do Mundo de Aventuras, só eu sei a trabalheira que me dava arranjá-los. Mas fui conseguindo, ele ficava muito entusiasmado quando via nas minhas mãos a última novidade e eu aproveitava para trocar com ele outras revistas. Fiz tudo isto secretamente pois não estava para dividir com outros o meu enorme esforço e assim a nossa amizade durou até eu sair da Casa Pia. Por isso devo à BD uma das maiores alegrias da minha vida. A leitura.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A Gripe Asiática na Casa Pia:

A pandemia da Gripe Asiática iniciou-se em Fevereiro de 1957, no norte da China, tendo o primeiro isolamento do vírus sido feito em Pequim. Da China, a epidemia passou, em meados de Abril, a Hong Kong e Singapura, de onde se difundiu para a Índia e Austrália. Durante os meses de Maio e Junho, o vírus
dissemina-se por todo o Oriente. Em Julho e Agosto, estende-se a África, atingindo a Europa nos meses seguintes e os EUA entre Outubro e Novembro. O vírus atinge assim a população mundial em menos de 10 meses.
A rápida difusão da pandemia deveu-se a dois factores:a rapidez dos transportes e o aumento das viagens internacionais;
o vírus sofre a mais importante variação antigénica,
O novo subtipo H2N2 não apresenta nenhuma semelhança com o subtipo anterior H1N1, devido a variações antigénicas nos dois antigénios de superfície.
A nível mundial, a morbilidade associada a esta pandemia foi muito elevada, calculando-se que afectou 20 a 80% da população, consoante as áreas.
A Organização Mundial de Saúde só tomou conhecimento de um surto grave na China, Hong Kong e Singapura em Maio de 1957. O Centro Mundial da Gripe passou a fornecer as características dos vírus que iam sendo isolados, o que permitiu ao Centro Nacional da Gripe português tomar as medidas necessárias para a identificação precoce da entrada do vírus no país.
A epidemia de 1957 entrou em Portugal por via marítima, através dos passageiros do navio Moçambique, vindo de portos africanos, onde grassava a gripe. Embora os tripulantes tivessem desembarcado no dia 7 de Agosto em Lisboa, foi em fins de Setembro que a doença adquiriu carácter epidémico, atingindo o seu máximo em Outubro.
Como nós estávamos fechados dentro do asilo não sabíamos o que se passava cá fora mas não nos passou despercebida a situação porque creio que mais de metade dos alunos baixaram à enfermaria. Eu nunca tinha visto tanta gente doente. Por incrivel que pareça não me lembro de grandes mudanças nas nossas actividades. Tudo continuou a rolar normalmente. A diferença é que íamos para o refeitório e estava meio vazio, nas aulas ou nas oficinas era o mesmo e até o recreio não tinha a algazarra do costume. Em termos de prevenção nada se fazia e nada nos deram para tomar. Ou não havia ou simplesmente os médicos não sabiam o que fazer o que eu não acredito muito. Nas enfermarias, aqueles que estavam doentes eram bem tratados e depressa se curaram. Lá porque era não sei, o que sei é que de maneira nenhuma se podia apontar fosse o que fosse aos médicos e enfermeiros. Creio até que o próprio Governo se saíu muito bem da situação. Naquele tempo havia ordem e disciplina o que ajudava muito. É certo que havia repressão, cencura, medo e muitas coisas mais mas, estas coisas sentem-se, embora não se pudessem dizer. Mas não me lembro do tal 'clima' de desconfiança em relação à situação vivida durante a pandemia. É claro que eu tinha a minha opinião e esta tinha a ver com o facto das pessoas, naquele tempo, serem muito ignorantes e ainda muito mais temerosas da igreja. Os lamentos íam sempre para os céus e nunca para a incompetência dos mortais. Como não se podia protestar contra o céu e muito menos contra os terrenos era mais fácil suspirar e dizer: "Que raio de sorte a nossa". Assim não se culpava ninguém. Eu fui dos poucos que escaparam e costumo dizer que se não morri daquela não morro doutra. Viver no meio de tantos infectados, tanto mais que nem sequer nos mandavam lavar as mãos, era realmente um milagre escapar. Felizmente não me lembro de ter morrido alguém dentro do asilo. Mas só em Lisboa parece que as mortes chegaram aos 288. Os tratamentos eram feitos com a vacina nacional 'Imunadol', antigripais e supositórios, utilizando-se, nos casos mais difíceis, a penicilina e promicina. A duração da doença é de 5 a 9 dias. Mantêm-se os liceus fechados. A situação era grave em Portugal mas não era melhor na Europa. Mas passou. Na vida tudo passa.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Os Americanos na Casa Pia:

Quando os barcos de guerra americanos entravam no porto de Lisboa era certo e sabido que os alunos da Casa Pia eram sempre convidados para visitar o respectivo navio. Nós próprios nos considerávamos seus protegidos ou afilhados. Não sei como é que isto começou nem qual a relação que a Casa Pia tinha com os americanos. A verdade é que nós íamos lá sempre visitar os navios. E não era só a visita. A Casa Pia recebia sempre grandes quantidades de víveres oferecidos pelo comandante. Eu sei muito bem do que falo porque me passaram pelos ombros muitos quilinhos das ditas ofertas. Lembro-me que um belo dia tive que carregar, eu e outros colegas, muitas caixas com latas de conserva dentro. Estas conservas eram muito diferentes das nossas. Por isso a curiosidade levou-nos a abrir uma caixa para ver o que era. Era manteiga em latas de aproximadamente 1 kg mais ou menos. Ficámos muito admirados. Primeiro porque não sabiamos ainda inglês, e depois de conseguirmos saber o que era mais admirados ficámos. Nós nem sabiamos o que era manteiga. Quem nos traduziu também nos explicou para que servia. Quer dizer que íamos passar a comer manteiga? Claro. Foi o que nos disseram. Então não é que ainda hoje estou à espera dessa manteiga? Muito mais tarde, com alguma paciência vim a saber que a dita manteiga entrou no circuito paralelo existente no Maria Pia. Quer dizer, todos os empregados ou quase todos, 'abotoaram-se' com a manteiguinha e nós nem lhe vimos a cor. Não quero mentir mas havia mais de 1 tonelada naquele armazém. A manteiga é só um exemplo. Acontecia com tudo o que entrava no Maria Pia como oferta e os empregados agredeciam. Ainda gostava de saber o que sentia aquela gente ao barrar com manteiga a sua deliciosa torrada, ainda por cima estrangeira. Creio que não sentiam nada porque havia uma frase generalizada no asilo que por vezes nos jogavam à cara: "Vocês não estão habituados a certas coisas". E não é que eles tinham razão?. Se nós nunca comíamos como é que podiamos estar habituados. Mas isto não é tudo. O grupinho de alunos que era convidado para visitar o navio (é preciso ver que nós éramos 600, não podíamos ir todos) chegavam ao asilo na volta contando maravilhas e nós muito interessados em saber tudo, como era normal.
Desde a comida estranha, hamburgas, cachoros, grossos bifes de vaca, batatas fritas, frango frito, pipocas, chocoletes, pastilhas elásticas e tantas outras coisas que às vezes até pensávamos se não haveria ali um pouco de exagero. Agora vejo que não porque já estive na América de costa a costa muitas vezes e sei como é a fartura americana. O que sempre me fez muita confusão eram algumas exigências dos americanos em determinados alunos com determinadas características. Porque é que eu nunca fui escolhido? Havia quem dissesse que era dor de cotovelo. Talvez fosse. Levei muitos anos a pensar nisso e só depois descobri que tinha a sua razão de ser. É que toda a gente sabia que eu agressivo com os 'abusadores'. E só então compreendi porque é que alguns deles vinham carregados de prendas e outros não. Nem todos se deixavam levar. Mas a minha grande frustação foi a de nunca poder beneficiar das ofertas que 'generosamente' eram feitas ao asilo. É bom que se saiba que nunca podia ter inveja dos que vinham carregados de prendas. Porquê? Porque no dia seguinte todas as prendas desapareciam. Todos nós sabíamos disso. Felizes dos filhos dos empregados que sorriam por nós.

sábado, 19 de setembro de 2009

A Oficina de Pintura do Maria Pia:

A Oficina de Pintura do Asilo Maria Pia, tinha acabado de ser remodelada quando eu fui para lá.Quando eu digo remodelada, quero dizer que mudou de Instrutor. O anterior tinha falecido e colocaram uma pessoa para nos ensinar que trazia idéias novas, daqui, a remodelação. Era um homem novo, profissional da 'ferrugem' (assim chamávamos às pessoas que tinham profissões em que era preciso sujar as mãos), com técnicas novas e vontade de trabalhar e ensinar. Eu tinha sido 'corrido' da oficina de serralharia porque chegáram à conclusão de que eu não tinha vocação. Esta era a versão oficial. Mas a verdade é que eu só tinha vocação para coleccionar chaves. De todos os pedaços de ferro que encontrava eu fazia chaves. Quando correram comigo eu já abria qualquer porta dentro do asilo o que me facilitava muito a vida. Eu depois conto, mas agora voltemos à Oficina de Pintura. O nosso novo Instrutor acabou com as maneiras de pintar que já deviam ter mais de 200 anos. Exigiu materiais novos que dentro dos possíveis lhe foram entregues. Até aqui esta oficina apenas efectuava trabalhos de pintura em porta e janelas ou mudava os vidros partidos. Com os novos materiais e técnicas começámos a pintar carros e letreiros. Ele introduziu um curso de 'desenhador de letras'. Era mesmo assim que se chamava. Aprendíamos a desenhar qualquer tipo de letra e pintá-la no respectivo local. É claro que ainda não havia computadores. Tudo era feito à mão. Para se fazer uma letra levávamos horas. Mas com o tempo fomo-nos tornando bons naquilo. Tanto que trabalho não faltava. Até o autocarro da Casa Pia (o novo, não o calhambeque) foi por nós pintado com as repectivas letras a dizer Casa Pia. Era a nossa primeira grande obra por isso nunca a esqueci. A técnica que empregámos na pintura dos claustros também foi aqui aprendida. Mas o Instrutor era um filho do Estado Novo. Pobre como quase todos e por isso também aproveitava as oportunidades que a vida lhe facilitava. Ele morava no Porto Brandão, do outro lado do Tejo e lembro-me que uma vez ele teve um trabalhão para que o asilo me deixasse ir um fim-de-semana a sua casa. Inventou umas tretas como desculpa e como todos precisavam uns dos outros lá acabaram por me deixar ir. É claro que foi um fim-de-semana bem trabalhoso para mim visto que a intenção era pintar toda a cozinha da sua casa e como precisava de ajuda eu era a ajuda ideal e barata. A única recompensa foi a comida que me deu enquanto lá estive e da terra não vi nada a não ser a estrada que nos levava ao cacilheiro. Esta oficina também não me servia, eu detestava e ainda detesto andar sujo. Teria que mudar de ares mas isso ainda demoraria mais uns anitos.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

As Fardas na Casa Pia:

Creio que naquele tempo todas as fardas eram feitas na Casa Pia. Tínhamos oficina de alfaiataria. Uma profissão com muita saída na altura. Todos nós tinhamos duas fardas. Aquela de trazer por casa e a outra de sair. A de trazer por casa era muito simples, mais simples era impossível. Era composta apenas por duas peças. Uma camisa azul clara e uns calções da mesma cor. Não me lembro de usar cuecas, provávelmente ainda não tinham sido inventadas. Andávamos sempre descalços, embora no inverno lá aparecessem, às vezes, umas sandálias abertas. Também havia oficina de sapataria. Havia sapatos mas era só para quando saíamos ou quando havia uma visita importante. Toda a roupa era igualzinha à da tropa, apenas modelos mais pequenos. Creio que alguma vinha das Oficinas Militares. Quanto à farda própriamente dita, a de sair, como se pode ver nos 5 rapazes na foto de cima e nesta do meu primeiro bilhete de identidade em 1959 era composta por 1 dolman fechado com botões de metal amarelo que tinham o desenho da Casa Pia e o tecido era de uma flanela azul escura. Na gola havia outro emblema mas este era cor de prata. Um par de calças do mesmo tecido. Um boné com o emblema da instituição. Por vezes usávamos um bivaque com emblema. Nestas ocasiões, em dias de festa, havia meias, ceroulas ou boxers e camisola interior. Mas isto era só em ocasiões muito importantes. E também havia um par de sapatos pretos.
Tratar da farda era uma tarefa árdua. As fardas estavam sempre fechadas à chave numa arrecadação à entrada da camarata. Só era aberta na véspera de eventos especiais, quando nos entregavam tudo para que nós tratássemos dela. Os botões estavam todos cheios de zebre devido a estarem fechados tanto tempo. Era preciso limpá-los com solarine enfiando os botões numa tala de madeira própria feita por nós. Era preciso engraxar os sapatos. Tinham que ficar a brilhar e às vezes era quase impossível porque o cabedal dos sapatos eram mais próprios para botas ensebadas. E ao deitar é que vinha a obra-prima. As calças tinham que ter vinco. Para vincá-las empregava-se o velho método militar. Na cama, debaixo do lençol debaixo, colocava-se com muito cuidado as calças molhadas no local que queriamos vincar. Puxava-se o lençol para cima. Tinha que ficar muito bem entalado e esticado para que não houvesse vincos a mais. Depois de tanto trabalho era só deitar em cima com mil cuidados, quase não nos podiamos mexer. O truque era mesmo não nos mexermos durante o sono. Só custa as primeiras vezes. É que, na manhã seguinte depois de nos vestirmos era passada uma revista a um por um. É claro que quem não se apresentasse devidamente fardado era castigado. O primeiro castigo é que o infractor não podia sair do asilo porque não estava devidamente apresentável. E isso era o castigo que mais nos custava. Quem passa o ano inteiro fechado entre muros não podia perder a oportunidade de sair. Sair era sempre uma diversão, fosse lá para o que fosse. Quando ao fim do dia voltássemos ao asilo era preciso arrumar tudo impecávelmente na dita arrecadação até haver uma outra oportunidade.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O Calhambeque da Casa Pia:

Não sei quem são estes alunos da Casa Pia, mas o calhambeque conheço-o muito bem porque ainda me lembro de ter andado nele. Naquele tempo, até que era muito jeitoso. Nós adorávamos sair nele. A cidade estava cheia de carroças que andar nele era um autêntico luxo. Uma vez, os passeios eram tão poucos que me lembro deles todos, fomos passear a Sintra. Foi a maior excursão da minha vida. Já dei a volta ao mundo muitas vezes mas este passeio nunca me esqueci dele, talvez por ser o primeiro da minha vida. Lá diz o ditado 'Não há amor como o primeiro'. Sintra, naquele tempo era uma aldeia, ainda não havia turistas. Os turistas éramos nós, os portugueses. E era verão. Lembro-me que o tempo estava óptimo. Apanhámos o eléctrico até à Praia das Maçãs.
O eléctrico de Sintra foi inaugurado há mais de 100 anos, a 31 de Março de 1904. O percurso, com uma extensão de 8.900 metros, foi prolongado a 10 de Julho desse ano até à Praia das Maçãs, totalizando uma extensão de 12.685 metros. Mais tarde, o eléctrico chegou às Azenhas do Mar.
O traçado do eléctrico assegurou o transporte de passageiros e de mercadorias entre a sede do concelho e a região agrícola, onde se produziam apreciadas variedades de fruta e o afamado vinho “ramisco”.
Adorámos o passeio por montes e vales, por vezes ao rés da estrada outras metia pelos campos e ainda por cima o que a pequenada mais gostava é que os ditos eléctrico eram totalmente abertos, o que nos dava uma grande sensação de liberdade, ao contrário do calhambeque que era todo fechadinho. E quando terminou a viagem na Praia das Maçãs tivemos direito a colocar os pés na areia só não podemos tomar banho no mar porque nós íamos fardados. A farda era igualzinha à que se vê na foto acima. Era a nossa farda de saída. Era impensável sair da Casa Pia sem farda. Agora imaginem a falta de senso daquela gente que nos comandavam. Devem ter tido um trabalhão doido para organizar o passeio? Nem pensar. Naquele tempo nada se organizava. À boa maneira portuguesa, tudo era feito em cima do joelho. Ali e agora se decidia o que fazer. Provavelmente, quando nos enfiaram dentro do calhambeque ainda ninguém sabia para onde íamos. Talvez alguém sugerisse Sintra. E digo isto porque nós nunca sabiamos para onde íamos nem quando íamos o que até nem era mau, porque assim não passávamos a noite em claro, com a ansiedade. Depois de pisarmos a areia, encher os bolsos de conchinhas, búzios e pedrinhas do mar lá estava o nosso calhambeque esperando por nós. Gostei tanto que muitos anos depois, quando me casei lá levei a minha mulher mas já havia turistas e tudo começava a ser diferente. De quaisquer das formas, eu e ela ainda subiamos a pé a encosta até ao Palácio da Pena. Não admira, tínhamos 25 anos. E naquele tempo não se pagava nada em lado nenhum. Hoje para se visitar seja o que for, tudo é pago. A cultura antigamente era só para ricos e de borla, hoje que é para os pobres também, temos que a pagar. Mas voltámos felizes e contentes para a nossa prisão, no nosso calhambeque.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A Padaria na Casa Pia:

A padaria era um dos monumentos da Casa Pia. Era a inveja de todos. Todos queriam ser padeiros. E alguns conseguiam. E não era para menos. Com a fominha que todos nós andávamos quem é que não queria aprender a fazer pão? Além de poder dar um certo aconchego à barriga o pão servia também de moeda de troca dentro do asilo. Um padeiro, lá dentro do asilo, conseguia adquirir quase tudo usando a troca. Para se ir para padeiro era preciso muita coisa ou quase nada. Era preciso ter um grande padrinho. Naquele tempo, e ainda hoje, quem tinha um padrinho tinha tudo. Normalmente, eram os 'abusadores', hoje têm o nome de pedófilos, quem controlava a padaria. Assim que saía uma fornada de pão, passados uns minutos toda a gente se começava a concentrar em redor da padaria atraídos pelo cheirinho saboroso do pão acabadinho de cozer e que inalava quase todo o recreio que era mesmo ali ao lado. Todos suplicavam um pedaço de pão quando alguém se assumava à porta da padaria. E quase sempre havia pão mas era só para alguns. Os que distribuíam esta esmola sabiam bem a quem dar o pedaço de pão tão desejado. Em frente à padaria havia um prédio em ruínas que noutros tempos tinha sido destruído num incêndio mas que se conservava quase intacto num dos lados. As escadas não foram afectadas e havia muitos esconderijos lá dentro. Era vê-los a subir pelas escadas, quase sempre um matulão com outro mais pequeno roendo um pedaço de pão. Esta era uma das muitas formas utilizadas pelos abusadores. Também devo salientar que esta prática era tão banal que ninguém ligava nenhuma. Numa idade em que os rapazes começavam a sentir algum desenvolvimento sexual, sendo isto tabú, mais porque ninguém sabia que respostas dar, era muito natural que as crianças se deixassem levar com as cantilenas dos mais velhos. Tanto mais que raparigas não havia nem sequer nos passava pela cabeça para que era que servia uma rapariga. Isto só viríamos a descobrir com a primeira ida 'às putas'.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O 'Gamanso' na Casa Pia:

Das coisas de que eu mais me recordo é, sem dúvida, o 'gamanso' diário. Toda a gente 'gamava' naquele asilo. Quando eu falo em 'gamar' não me refiro a grandes roubos. O que eu quero dizer é aquele "pequenino desvio" que diáriamente se fazia, sem ninguém dar por nada e que se tornava quase um dado adquirido. Eu explico melhor. Não sei quantos trabalhadores havia no Maria Pia naquele tempo, mas eram muitos. Trabalhadores que vinham de fora todos os dias e que regressavam a suas casas ao sol pôr. Era hábito e normal que todos os trabalhadores transportassem consigo a respectiva "lancheira". Uma pasta, normalmente de cabedal onde se acomodava o seu almoço. É claro que na volta vinha vazia. Mas não com os trabalhadores do Maria Pia. Eu cheguei a abastecer muitas dessas lancheiras. Depois de almoçar, o trabalhador entregava a sua lancheira, discretamente a alguém. Esse alguém, levava as lancheiras para diversos sítios, por vezes na cozinha, por vezes no armazém de víveres, outras na arrecadação do pão ou onde quer que fosse procuravam não chamar muito a atenção. Durante muito tempo eu fui ajudante do encarregado do depósito do pão. Ajudava a carregar o pão da padaria para o depósito. Ajudava a cortar o pão e a separá-lo para ser consumido nos refeitórios. Ajudava a colocar dentro das lancheiras e marmitas o respectivo pedaço de pão e outros haveres, tais como postas de bacalhau, uma ou outra batata, algum pedaço de toucinho salgado, algum chouriço. Enfim, não eram grandes quantidades mas somando tudo talvez fosse maior do que a minha imaginação. Mas de onde é que saía tudo isto? Da nossa panela, claro. Eu trabalhei um pouco por todo o asilo, em várias secções e tinha uma noção básica do movimento do asilo. E havia uma coisa de que eu tinha a certeza. O orçamento que o Estado fornecia ao asilo era muito razoável para a época. Se não fossem estes e outros 'gamansos' a vida na Casa Pia seria quase perfeita. Só faltava uma coisa essencial. O controlo por parte do Estado que não existia. Mas um dia... já se dizia lá na minha terra quando a minha mãe ía buscar água à fonte " Tanta vez o cântaro vai à fonte que um dia lá fica a asa". Foi o que aconteceu. Um belo dia todas estas actividades paralelas chegaram aos ouvidos do Sr. António de Oliveira Salazar, Presidente do Concelho de Ministros de Portugal. Querem saber o que aconteceu? No dia seguinte recebemos ordem para fazermos uma inspecção médica a todos os alunos. É claro que a maioria estava completamente tísica, se é que é este o nome. Hoje dir-se-ía sub-nutrida talvez. A partir daqui as nossas mesas do refeitório começaram a parecer um banquete para nós. Tudo mudou. Terminara o tempo das vacas-magras e veio o tempo das vacas-gordas. Infelizmente já veio no fim para mim. Eu saíria em breve da Casa Pia, mas contente por ter visto realizado um sonho. O sonho de poder comer, sem passar fome.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Rezar o Terço na Casa Pia:

A vida religiosa na Casa Pia era uma obrigação. Embora não fosse completamente controlada pelos padres, estes tinham uma grande influência dentro do asilo. Havia aulas de Religião e Moral. Éramos obrigados a ir à missa todos os domingos e o pior é que no mês de maio e de outubro tinhamos que ir rezar o terço todos os dias à tardinha na Igreja da Madre de Deus. Entrávamos por um portão de ferro que estava sempre fechado. Só por aqui passávamos quando nos levavam para a igreja. Seguiamos por corredores e escadas e íamos entrar directamente na igreja. A igreja estava sempre aberta ao público mas nós enchiamos de tal maneira que poucas pessoas conseguiam entrar. A entrada era controlada de maneira que nós não tivessemos qualquer contacto nem físico nem verbal com pessoas de fora. Parece que estavam sempre com medo de qualquer coisa, o que era não sabiamos. Talvez tivessem medo que fugissemos porta fora. Talvez tivessem medo que fossemos desencaminhados. Não acredito muito nisto porque saltar o muro era relativamente fácil. O que eu acredito é que por estarmos expostos ao público eles tinham que dar a impressão de nos protegerem. O ir rezar o terço a uma igreja tão importante dava ao asilo uma nota positiva perante o público. Para nós era uma tremenda seca. Mas não havia como escapar. Éramos excessivamente controlados. Assim, já que não havia nada a fazer era preciso arranjar maneira de tornar a coisa menos aborrecida. Nós já sabiamos toda a lenga-lenga de cor e salteado.A solução era um bocado difícil por falta de material, mas era engenhosa. Todos nós tinhamos um livro com orações e outras coisas do género para seguir a missa ou o terço. Então quase todos nós tinhamos um livro de banda desenhada que naquele tempo se chamava 'livro aos quadradinhos', que era colocado dentro do livro de orações e assim nos distraíamos com aventuras que nos transportavam no imaginário das histórias. Naquele tempo a banda desenhada era muito rara e muito difícil de arranjar, porque não era acessível às nossas bolsas. Aliás, nem bolsas nós tinhamos. Mas sempre se arranjavam algumas que eram religiosamente guardadas e lidas por todos, passando de mão em mão. A grande maioria dos alunos não tinha família mas os poucos que tinham estavam sempre a pedir banda desenhada. O problema é que as famílias era tudo gente muito pobre o que tornava quase sempre impossível adquirir as tais histórias aos quadradinhos. As poucas revistas que por lá apareciam eram tão velhas tão velhas que havia ocasiões que em toda a igreja cada aluno só tinha um folha rasgada para se entreter. Alguns nem uma folha tinham.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Os Azulejos do Maria Pia:

Todos os domingos apreciava estes belos azulejos. Era aqui que vinhamos obrigados à missa. Esta é a Igreja da Madre de Deus e foi aqui que eu aprendi a gostar de azulejos. De tanto olhar para eles fui apreciando a sua arte. Mas não era só na igreja que havia azulejos. Havia muitos por todo o lado dentro do convento mas os da igreja são painéis enormes. Era impossível não gostar deles.Na altura, eu pertencia à Oficina de Pintura. Faziamos de tudo, desde pintar portas e janelas até ao próprio autocarro do asilo, tudo passava pelas nossas mãos. Um belo dia, alguém resolveu restaurar os azulejos dos claustros, porque aquela zona estava um pouco devastada e uma ala completamente consumida por fogo. Dentro do asilo, que tem uma área enorme, havia vários edifícios completamente arruinados pelas chamas. Um desses edifícios ficava mesmo colado aos claustros. Mas a nossa tarefa eram os claustros. O edifício comido pelo fogo lá ficou na mesma e nem sequer sei se já foi recuperado ou não. A toda a volta dos claustros, no 1º piso, havia painéis de azulejos em muito mau estado. Veio de fora do asilo uma equipa de especialistas que os recuparam de uma forma espectacular. Eu passava horas a ver como eles faziam. Por exemplo, nos locais onde faltavam azulejos eles retiravam toda a sujidade e colocavam no buraco um azulejo em branco. Orientando-se pelo resto do painel o especialista conseguia desenhar o que faltava naquele pedaço. Depois de devidamente tratado o azulejo era lá colocado e dava gosto ver o painel completo. É claro que eu não tinha nada a ver com os azulejos. A minha tarefa era outra. Estava lá toda a oficina de pintura e a mim calhou-me pintar o tecto dos claustros do 1º piso. Não era apenas um trabalho de pintura. Íamos aplicar uma técnica que já andávamos a aprender há algum tempo. Como o tecto era de madeira teríamos que o pintar imitando os veios da madeira de forma saliente. Foi a minha modesta contribuição para a recuperação desta obra. Ainda hoje não sei como se encontra actualmente os claustros porque eu nunca mais lá fui. Depois de ter saído do asilo nunca mais lá fui e podia tê-lo feito mas ainda estava muito 'zangado' com a Casa Pia. Os anos foram passando, assentei arraiais no Algarve o que dificultava ainda mais. Só há pouco tempo é que compreendi que eu não queria lá ir. Se eu naveguei por todos os oceanos, percorri todos os continentes, visitei mais de metade dos países existentes e viajei por quase todo o país, porque é que nunca tinha tempo para lá ir? Mas ficou-me o gosto pelos azulejos. Ás vezes vou à Net dar uma espreitadela. Pelo que vejo por satélite está tudo na mesma. Sei que se instalou lá o Museu do Azulejo mas ainda não compreendi que espaço ocupa naquele espaço.Talvez um dia por lá passe.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

O Circo na Casa Pia:

Já aqui mencionei que éramos frequentemente castigados por tudo e por nada, aliás era mais fácil sermos castigados por nada do que por tudo.Mas hoje vou aqui relatar o pior castigo de todos. Felizmente posso gabar-me de que nunca me foi aplicado mas vi ser aplicado a outros que não tinham tanta sorte.Para merecer este castigo bastava ter dificuldade em se levantar de manhã ou fugir ao banho matinal. Eram os dois maiores defeitos dentro do asilo. Não havia perdão. Mas primeiro falemos do 'circo'. Quer dizer, o local onde eram aplicados os castigos. A cozinha dava para um enorme pátio que mais parecia um claustro e ao lado havia umas casas de banho. Junto a estes claustros, da parte de fora do asilo passava, e passa, a Rua Bispo de Cochim. A toda a volta dos claustros era encimada pelas camaratas. Todas as janelas, e eram muitas, deitavam para os claustros. Como eram janelas enormes cabia nelas muita gente. Espectadores não faltavam. O circo estava montado. Agora vamos ao castigo. O réu, ou os réus, quase sempre era mais do que um, eram colocados no meio do pátio. O silêncio era de cortar. Naquele momento ninguém se manifestava porque nos dava a sensação de que ainda poderiamos ser chamados para lá. Da cozinha saía uma mangueira e da casa de banho saía outra. Mas atenção que não eram simples mangueiras de borracha. Eram 'apenas' mangueiras dos bombeiros. Sempre me fez muita confusão como é que aquelas mangueiras aqui vinham parar. Dentro da Casa Pia não havia nenhuma Corporação de Bombeiros nem sequer qualquer instalação contra incêndios. Por isso havia muitos prédios queimados dentro do asilo. Os bombeiros vinham sempre de fora e quando cá chegavam era quase sempre tarde demais. Mas alguém as providenciava. A força da água de uma mangueira daquelas creio que dá para derrubar um cavalo. Agora imaginem o que não fará a uma criança de 10 ou 12 anos. É claro que a força não era tanta porque a torneira onde era ligada não era a mais adequada. De qualquer forma atirava sempre com as pobres crianças ao chão. Como ninguém achava muita graça era preciso atiçar os ânimos na assistência. Vai daí, para disfarçar a saída de sena dos castigados, viravam as mangueiras para os espectadores. Nós já esperávamos por isso e toca de fechar as janelas. Mas não era fácil. Antes de fecharmos as janelas já estávamos todos molhados, porque as janelas muito antigas e sem uso, metade delas não se mexiam. E todos acabavam rindo porque o espectáculo tinha terminado. No pátio há um portão enorme que dá para a dita rua e como naquele tempo ainda não havia o INEM era uma camioneta que trazia os haveres que fazia de ambulância para o hospital, quando os havia. Ninguém perguntava nada. Eram sempre 'coisas de crianças'.

domingo, 6 de setembro de 2009

A Fanfarra do Maria Pia:

Tanto quanto me lembro a fanfarra que tinhamos no Maria Pia não era grande coisa, mas fazia falta. Havia uns quantos corneteiros e outros tantos a bater no tambor. Creio que pouco mais havia. Mas fazia falta porquê? Ora vejam. Logo pela manhã, em vez de deixarem cantar o galo e até havia alguns por lá, não senhor. O pobre bicho não tinha voz na matéria. Só o corneteiro tinha o direito de fazer acordar toda a gente. O toque de alvorada fazia com que todos largassem o vale dos lençóis. E ai de quem o não fizesse. Havia castigos especiais para isso, mas disso eu conto noutra altura. Saltar da cama equivalia a correr para debaixo do chuveiro com a água à temperatura ambiente. Quer dizer: gelada. Ainda me lembro que no inverno chegava a congelar nos canos e às vezes, consoante a disposição dos perceptores lá mandavam ligar a caldeira da água quente mas isto só acontecia se a água não corresse mesmo e por vezes havia avarias porque me parece que a máquina não suportava as diferênças térmicas. Depois de tomarmos banho, havia que fazer as camas, varrer o chão, arrumar tudo. Para nos vestirmos era fácil. Só usávamos uns calções e uma camisa de sarja azul, como na tropa. De inverno enfiávamos umas sandálias abertas e no verão andávamos descalços. Era preciso poupar. E vinha logo o toque a formar para descermos ao refeitório.Formávamos por alturas, os mais pequenos á frente e os maiores atrás. Depois do pequeno almoço todos formavam por camaratas no pátio em frente ao refeitório. Novo toque para avançar ladeira acima até às oficinas ou às salas de aula, mas só depois de tocar a dispersar na área do recreio é que tinhamos um pouco de tempo para nós. Conforme os deveres que tinhamos estavamos mais ou menos tempo no recreio. Há hora do almoço havia novo toque para formar e íamos em formatura para o refeitório. Por vezes vinha a fanfarra completa para um exercício geral e normalmente na véspera de dias de festa tinhamos que ensaiar com a fanfarra. Todos os movimentos eram controlados pelo toque do ou dos clarins. Os tambores ou as 'arrequitas' como nós lhe chamávamos serviam apenas para marcar o compasso. De cada vez que o tambor dava um toque diferente e mais profundo, era sinal de que tinhamos que bater com o pé esquerdo no chão. Era uma maneira de controlar a cadência de passo. Igualzinho às Forças Armadas. Tudo o que nós faziamos era uma miniatura da tropa. Quando anos mais tarde eu fui para a tropa, a adaptação foi canja. Para mim tudo era normal, à excepção das armas. Isso sim, era novidade. Depois do almoço era a mesma rotina para baixo e para cima. Ao jantar o mesmo. Depois à noite, já depois de recolhermos às camaratas ainda havia mais dois toques. O primeiro acabava com todas as brincadeiras e todos se enfiavam nas camas. As luzes iriam permanecer acesas e era permitido ler, só que não havia nada para ler. De vez em quando alguém aparecia com um desenho animado que todos tinham que ler passando de mão em mão. Nem um jornal velho aperecia. A leitura, naquele tempo, não era nada divulgada e muito menos apreciada por quem mandava porque estorvava a disciplina. Outros tempos. Neste espaço de tempo que mais parecia o crepúsculo, todos tinham que permanecer na cama dentro dos lençóis. Quando tocava 'ao silêncio', passados 15 minutos, as luzes eram apagadas e nós tinhamos mesmo que adormecer. E adormecer era o melhor porque estando a dormir não sentiamos frio. O Maria Pia era (e é) um asilo situado num convento cujas paredes têm mais de um metro de grossura com janelas enormes que permaneciam abertas de noite e de dia. Jamais se fechavam fosse inverno ou verão. Agora imaginem as correntes de ar que éramos obrigados a suportar. E para conseguirem imaginar o tamanho das camaratas apenas vos posso dizer que cada camarata chegava a ter mais de 50 camas, e não estavam em cima umas das outras. Eram colocadas ao lado uma das outras.

sábado, 5 de setembro de 2009

A Fuga da Casa Pia:

Um belo dia acordei com saudades. Saudades da minha terra. Eu sou da Chamusca, no Ribatejo. E se bem o pensei melhor o fiz. Resolvi fugir da Casa Pia. Não era tarefa fácil, mas para a espeviteza e ignorância de uma criança, não há impossíveis.Quando me trouxeram para Lisboa ainda hoje me lembro que entrei na capital por Sacavém e a viagem acabou no final da Av. Almirante Reis, muito perto do Martim Moniz, pois era ali que, naquele tempo se situava a Rodoviária. Também me lembro que a dita avenida era um caos de carroças por todo o lado. Começei então a pensar e a tentar memorizar todo o caminho de volta. Na altura eram 120 kms e demorava quase um dia. Mas é claro que eu não tinha consciência disso. Entendia que era capaz e pronto. Estava decidido. Havia que arranjar companhia. Não é que não fosse capaz de fugir sózinho. Mas naquela idade e naquele tempo nada se fazia sózinho. A companhia era indispensável. Sentia-me mais protegido. Várias cabeças pensavam melhor que apenas uma. Se fosse preciso roubar para comer era mais fácil organizar o furto. Muitas vantagens trazia a companhia quanto mais não fosse porque tinhamos que dormir ao relento e a companhia dava muito ânimo. Se bem, que dos perigos ninguém pensava. Nem tal coisa se previa. Note-se que eu tinha um objectivo na fuga. Voltar para a minha terra. Os outros que consegui angariar nem sequer tinham objectivos. Só queriam fugir por fugir. A duríssima vida que levávamos na Casa Pia nem sequer dava para pensar nas consequências. E um belo dia aí vamos nós. Saltámos o muro, subimos a Av. Afonso III, descemos a Morais Soares e viemos dar à Praça do Chile. A Praça do Chile é uma rotunda da Av. Almirante Reis. Até aqui sabia eu. Era só virar à direita em direcção ao Areeiro e depois ao Aeroporto. O Aeroporto era a minha grande referência. Eu sabia que a seguir ao aeroporto era Sacavém. Mas, há sempre um mas. Há 50 anos atrás Lisboa era muito deserta nalguns sítios. Ali por volta do local onde hoje se faz o Festival do Rock in Rio, a Quinta da Bela Vista, começou a anoiteçer. Comida já não havia porque os pedaços de pão que trouxemos já tinham acabado. Era preciso sair da estrada e enfiar pelas quintas procurando alguma árvore com frutos, coisa muito frequente naquele tempo. O crepúsculo depressa desapareceu e a noite desceu rápida. Ficámos desorientados e com frio. Como é que íamos fazer se nem sequer sabiamos acender uma fogueira? Fomos andando e luzes ao fundo acendeu-nos a esperança. Fomos dar a um acampamento. Digo acampamento porque eram mais tendas e barracas que casas. Depressa deram connosco e nós também estávamos desejosos de ser descobertos. Rápidamente viram que andávamos perdidos e depressa chegaram à conclusão que andávamos fugidos, o que não era de admirar. Estávamos em Chelas, o que quer dizer que estávamos quase novamente na Casa Pia. De Chelas à Madre de Deus, onde fica o Maria Pia, era um pulo. Estávamos por detrás do asilo, quer dizer que fizémos uma volta redonda e quase regressámos ao ponto de partida. Alguém disponibilizou um automóvel para nos levar de volta. Ainda tenho o carro na minha memória. Era aquilo que hoje se chama uma Station ou uma Van, com cromados e madeira a decorar. Provávelmente já só existem em colecções. Quando entrámos no asilo às tantas da noite parecia que estávamos a passar numa passadeira vermelha tal foi o alarido provocado. Do castigo nem vos falo, porque a sova que levámos até me envergonho de contar.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O Cinema na Casa Pia:

De vez em quando havia sessões de cinema no Maria Pia. Eram tão raras que me lembro delas como algo de bom que acontecia e que devia ser guardado no meu pensamento para todo o sempre. Quando tal acontecia era como um dia de festa. Mas nem tudo eram facilidades. O cinema era apresentado num pavilhão que servia para todos os eventos, que não eram muitos.Este pavilhão era mais utilizado para jogos de voleibol, que eu adorava e raramente de basquetebol que era pouco apreciado. Quando terminávamos o jantar tinhamos que levar os bancos do refeitório para o pavilhão. Reparem que nós tinhamos as nossas refeições em mesas de pedra compridas. Eram 9 rapazes de um lado e outros 9 do outro em frente. Portanto, cada mesa levava 18. Mas só haviam dois bancos. Os bancos eram de madeira e suportavam o peso de 9 alunos cada. Teriam, portanto, uns 4 ou 5 metros cada um. Não eram nada leves, mas eram carregados, cada banco, pelos seus respectivos 9 alunos que nele se sentavam. Tudo ía bem se os 9 alunos carregassem todos por igual. Porém, há sempre 'chicos espertos' que se aproveitam. Os do meio só tinham que baixar um pouco o ombro e de uma maneira em geral todos estes tinham a mesma ideia. Resultado, os das pontas é que carregavam o peso todo. Isto provocava ódios de estimação, contas que seriam acertadas mais tarde, na devida ocasião. Não podiamos protestar em voz alta porque seria pior. Nornalmente, os protestantes recebiam uma ou outra chibatada pelo atrevimento de quebrar o silêncio e a ordem. Era a disciplina. Chegádos ao pavilhão éramos orientados a colocar os bancos nos lugares indicados. Nem sempre nos agradava a posição em que ficávamos. Os mais velhos faziam valer o seu estatuto e obrigavam os mais novos a trocar de lugar sem que os perceptores reparassem. Era uma guerra de nervos que terminava quando as luzes se apagavam para começar o filme. Normalmente começava sempre com a propaganda do Estado Novo e notícias do mundo português sempre enaltecendo as façanhas lusas pelo mundo fora. Tenho que reconhecer que o Estado Novo gostava muito de elogiar os seus heróis. Depois vinham os desenhos animados. Isto era imperdível. Riamos tanto que as gargalhadas alimentavam a nossa disposição por muito tempo. Entretanto vinha o intervalo. Ninguém saía dos seus lugares nem nós nos atreviamos a perder o lugar. Era só o tempo de mudar a bóbine. E vinha o filme principal. Era sempre uma surpresa, pois nunca sabiamos o que íamos ver. O filme nunca era anunciado. Uma táctica muito eficaz no caso de acontecer não poderem apresentar o filme escolhido. Normalmente era sempre um filme de aventuras. Aqui tenho que dar a mão à palmatória pois era realmente o mais adequado para uma cambada de ignorantes como nós. Pelo menos, as aventuras tinham o condão de nos fazer sonhar tal como faziam sonhar qualquer pessoa de qualquer parte do mundo. Apesar de tudo acho que esta decisão era politica. Dizia o velho ditado fascista que enquanto o povo sonha, está de barriga cheia. Por isso o regime do velho Salazar apoiava tanto o futebol, o fado e Fátima.Mas entretanto o filme terminava e a noite já ía longa. Quando saíamos do pavilhão já era noite e não estávamos habituados a andar de noite. A esta hora, nos outros dias, já tinha tocado a silêncio. Mas ainda tinhamos que 'esfolar o rabo'. Faltava o mais difícil. Era preciso trazer de volta todos os bancos para o refeitório porque no dia seguinte faziam falta para o pequeno almoço. E depois do trabalho concluído, já nós bucejávamos de sono, ainda era preciso formar em colunas de três e seguir em formatura para as camaratas, sim, porque nós andavamos sempre em formatura para todo o lado. O bom nisto é que não nos obrigavam a lavar os dentes porque, parece, que ainda não tinham sido inventadas as escovas de dentes, ou pelo menos ainda não tinham chegado à Casa Pia.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

As Tâmaras na Casa Pia:

Em Lisboa, como em quase todas as localidades, existem palmeiras (Phoenix Dactylifera) que dão tâmaras como as que se vêm na foto acima. Para nós, eram um óptimo petisco. No Maria Pia havia por lá uma ou duas dessas palmeiras mas para 600 alunos esfomeados, não dava para nada e nem sequer as deixávamos secar convenientemente. Por que era um fruto proibido tornava-se apetecido. Vai daí era preciso ir à procura delas. Das vezes que saímos do asilo, quase sempre saltando o muro, aproveitavamos para memorizar onde elas estavam para mais tarde, quando estivessem boas para comer, lá podermos ir. Mas isto não era tarefa fácil. Era preciso memorizar. Era preciso saltar o muro, que era o mais difícil. Era preciso guardar segredo. Porque nas nossas cabecinhas infantis existia a ideia de que as árvores eram muito poucas, tal como lá dentro do asilo. Mas não era verdade. A cidade estava cheia delas. Creio até que na altura haviam muitas mais do que hoje. Só que os nossos caminhos eram quase sempre os mesmos e por onde passávamos não haviam assim tantas. Por isso era preciso explorar outras ruas e praças. Assim fazíamos mas geralmente íamos em grupos pequenos. Pequenos por conveniência nossa. Eram menos a comer. Para saltar o muro se fossemos muitos chamava mais a atenção. Andar na rua muitos também chamava mais a atenção. Mas não o podiamos fazer individualmente, porque lá diz o ditado: "A união faz a força". Num grupinho pequeno sentiamo-nos mais protegidos. É preciso não esquecer que se hoje desaparecem montes de crianças todos os dias, o que não era na década de 50? Em tudo nós pensávamos. Pensávamos nós que pensávamos em tudo. Mas por vezes éramos apanhados e castigados. Por isso tudo tinha que ser devidamente planeado e com antecedência. De qualquer forma tempo era o que mais tinhamos. O pior é que o raio das tâmaras levavam muito tempo a amadurecer. Só davam fruto uma vez por ano. A espera era longa. Mas muito mais saborosa quando lhe deitávamos a mão. E também não era nada fácil deitar-lhe a mão. A palmeira é uma árvore muito alta. Trepá-la estava fora de questão. Não podiamos sujar a farda. Em condições normais já nos dáva um trabalhão cuidar dela quanto mais sujá-la ou pior, rasgá-la. Isso seria uma catástrofe. A única solução seria atirar pedras para o cacho das tâmaras obrigando-as a cair no chão. Felizmente, naquele tempo raramente se via um automóvel mas as pessoas que passavam rápidamente corriam connosco. Havia que fazer a coisa pela calada. Enquanto um atirava a pedra, os outros olhavam e certificavam-se que não vinha ninguém. Era assim a árdua tarefa de apanhar umas míseras tâmaras que nos aconchegasse o estômago da fominha que passávamos.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Odiar Espanha na Casa Pia:

Sendo o Estado Novo português e o Regime Franquista espanhol dois Estados da direita fascista, porque é que se odiavam tanto? Seria pelo passado? Ou seria pela ignorância dos dois povos? Ainda hoje não consigo compreender. Ainda hoje existe esse tal ódio. Mas hoje há um motivo. Os espanhóis estão a comprar Portugal aos poucos. Há quem tenha a certeza de que um dia os espanhóis vão conseguir ter tudo nas mãos. Será? Mas alguns acham que não faz mal, porque um dia, surgirá alguém que consiga correr com os espanhóis. Será? Sinceramente, dúvido. Os tempos são outros, dizem outros. Mas as intenções espanholas parecem as mesmas. Serão? O que eu sei é que as novas gerações não se preocupam nada com isto. Porquê? Será que os espanhóis também contam com isto? É muito provável.
Há dias dei comigo a pensar nisto e a minha memória recuou no tempo. Porque razão é que eu ainda não consigo gostar dos espanhóis? Bom, esta pergunta é simples de responder. Eu fui criado na Casa Pia e lá, ensinaram-me a odiar Espanha. O porquê é que não consigo entender. No dia-a-dia tudo servia para dizer mal de Espanha. Levávamos sempre com o velho ditado: "De Espanha, nem bons ventos nem bons casamentos". Mas outra coisa que eu não consigo entender é porque razão se falava tanto de Espanha. Nós não tinhamos nenhum contacto com Espanha ou com espanhóis. Seria politica. Talvez. Apesar dos regimes serem aparentemente iguais, ainda havia muitas divergências e nós não sabiamos disso nem de nada. Acreditávamos piamente em tudo o que nos diziam. Ainda hoje sinto que fui muito mal educado pela Casa Pia. Qualquer coisa de bom ou grandioso que acontecia em Espanha diziam-nos logo: Não admira, Espanha é cinco vezes maior que Portugal. A grandesa territorial espanhola sempre serviu de desculpa para o acomodar dos portugueses. Até no futebol sempre se viu isto.
Mas a minha pergunta principal é: Porque é que eu ainda hoje continuo a odiar os espanhóis? Eu vou e sempre fui a Espanha diversas vezes. Neste momento até estou a programar mais uma ída a Sevilha. Eu gosto muito de ir a Espanha, gosto de ver as suas paisagens, gosto de ver os seus monumentos, azulejos, candeeiros e até as suas igrejas e no entanto nem sequer sou católico. Mas quando me esbarro com o povo, fico de pé atrás. Porque será? Primeiro, a língua incomoda-me. Depois, a brutalidade espanhola também me incomoda. Mas porque é que me incomoda a brutalidade num espanhol. E note-se que também as mulheres as acho brutas. Talvez pelo tom abrutalhado com que falam a sua língua. É o que eu sinto. Eu viajei por todos os oceanos, por todos os continentes, por quase todos os países e nunca senti nada igual por outros povos. Porquê? Só encontro uma explicação: Fui educado de uma maneira errada pela Casa Pia.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Andar de Corrimão na Casa Pia:

Andar de corrimão era um desporto bem radical naquele tempo. Parece que hoje gostam mais de lhe chamar Escorregar de Corrimão. Eu prefiro Andar de
Corrimão porque foi assim que sempre andei. Havia diversos sítios no Maria Pia onde nos podiamos divertir a andar de corrimão. O divertido é que eram sítios de pouco controlo pelo que quase sempre estávamos sózinhos e à vontade.
Organizávamos verdadeiras competições. O Maria Pia é um Convento enorme e muitos dos corrimões eram (e devem ser) de pedra. Mas só uma pedra polida pelo tempo e pelos nossos calções se tornava escorregadia suficiente para podermos alcançar a velocidade desejada. É claro que tinhamos a nossa técnica e os nossos cuidados para garantir a nossa segurança, de tal forma que ensinávamos os mais pequenos com muito cuidado. Tudo porque não queríamos que um qualquer acidente pudesse proibir a prática deste desporto interno. E havia verdadeiros campeões nas descida em corrimão. Os acidentes eram raros, mas eu fui o protagonista do maior de todos. Um belo dia, o entusiasmo fez-me esquecer a segurança e aí venho eu do primeiro andar direitinho ao chão. O chão era (e ainda deve ser) de pedra. Ainda estou para saber como é que eu caí mas a verdade é que não parti nada. Lembro-me que fiquei muito tonto. Fui levado para a enfermaria mas quando viram que não tinha nada partido mandaram-me embora. Naquele tempo era assim, quando não se parte nada tudo está bem. Mas recordo-me muito bem que ao jantar eu via dois pratos á minha frente e nos dias seguintes não andei lá muito católico. Será que ainda hoje se anda de corrimão lá para aquelas bandas?

terça-feira, 25 de agosto de 2009

O Desporto na Casa Pia:

O Desporto na Casa Pia era "tudo ou nada". Quer dizer, havia desporto mas não podiamos escolher. Tinha que ser como eles queriam. Eu gostava de voleibol mas embirraram que eu devia jogar futebol. Como eu também era teimoso resolvi fazer tudo ao contrário para ver se me deixavam jogar vóleibol. Mas saiu-me o tiro pela culatra. Quando me punham a jogar futebol eu não me mexia e quando a bola vinha ter comigo eu chutava sempre ao contrário. Depressa perceberam que eu estava a fazer beiçinho e depressa resolveram o problema. Fui completamente banido do desporto. Nunca mais tive autorização para integrar qualquer equipa, fosse a sério ou a brincar. A prepotência no seu maior. Só mais tarde vim a saber que o voleibol era jogado por uma determinada élite lá dentro do Maria Pia. Na verdade, o desporto não me interessava muito. A minha verdadeira ambição era estudar. Mas parece que eu batia sempre à porta errada. O desporto foi só uma delas. Mas no meu tempo até havia muito desporto, só que estava todo muito mal estruturado. Ainda me lembro que foi feito um ringue de Hóquei em Patins lá no Maria Pia. O Hóquei era muito popular naquele tempo devido às extraordinárias equipas nacionais que nos incutiam a glorificar. Mas o ringue foi construído por nós. Todos nós trabalhámos arduamente para erguer um modesto ringue que de ringue só tinha um excelente piso de cimento muito liso. A mentalidade tacanha da época considerava que para se andar em patins só era preciso um bom piso. O resto teria que ser feito pela carolice de alguns. E foi a carolice de outros que também nos fez trabalhar muito para fazer uma piscina. Aproveitando um tanque velho desactivado que lá havia dentro do recinto do recreio, alguém se lembrou que dava uma óptima piscina. E deu. Mão-de-obra era coisa que não faltava. E nós aproveitámos bem todo o prazer que nos dava a piscina. Não sei se ainda existe mas a piscina sempre foi muito importante para nós. Não só pelos banhos e mergulhos que dávamos mas também porque atrás da piscina era o único local do recreio que estava fora da visão do perceptor que vigiava a grande área do recreio. Era o único local onde a malta podia fazer certas coisas como fumar um cigarrinho. Desporto, no Maria Pia era tudo.