sábado, 5 de setembro de 2009

A Fuga da Casa Pia:

Um belo dia acordei com saudades. Saudades da minha terra. Eu sou da Chamusca, no Ribatejo. E se bem o pensei melhor o fiz. Resolvi fugir da Casa Pia. Não era tarefa fácil, mas para a espeviteza e ignorância de uma criança, não há impossíveis.Quando me trouxeram para Lisboa ainda hoje me lembro que entrei na capital por Sacavém e a viagem acabou no final da Av. Almirante Reis, muito perto do Martim Moniz, pois era ali que, naquele tempo se situava a Rodoviária. Também me lembro que a dita avenida era um caos de carroças por todo o lado. Começei então a pensar e a tentar memorizar todo o caminho de volta. Na altura eram 120 kms e demorava quase um dia. Mas é claro que eu não tinha consciência disso. Entendia que era capaz e pronto. Estava decidido. Havia que arranjar companhia. Não é que não fosse capaz de fugir sózinho. Mas naquela idade e naquele tempo nada se fazia sózinho. A companhia era indispensável. Sentia-me mais protegido. Várias cabeças pensavam melhor que apenas uma. Se fosse preciso roubar para comer era mais fácil organizar o furto. Muitas vantagens trazia a companhia quanto mais não fosse porque tinhamos que dormir ao relento e a companhia dava muito ânimo. Se bem, que dos perigos ninguém pensava. Nem tal coisa se previa. Note-se que eu tinha um objectivo na fuga. Voltar para a minha terra. Os outros que consegui angariar nem sequer tinham objectivos. Só queriam fugir por fugir. A duríssima vida que levávamos na Casa Pia nem sequer dava para pensar nas consequências. E um belo dia aí vamos nós. Saltámos o muro, subimos a Av. Afonso III, descemos a Morais Soares e viemos dar à Praça do Chile. A Praça do Chile é uma rotunda da Av. Almirante Reis. Até aqui sabia eu. Era só virar à direita em direcção ao Areeiro e depois ao Aeroporto. O Aeroporto era a minha grande referência. Eu sabia que a seguir ao aeroporto era Sacavém. Mas, há sempre um mas. Há 50 anos atrás Lisboa era muito deserta nalguns sítios. Ali por volta do local onde hoje se faz o Festival do Rock in Rio, a Quinta da Bela Vista, começou a anoiteçer. Comida já não havia porque os pedaços de pão que trouxemos já tinham acabado. Era preciso sair da estrada e enfiar pelas quintas procurando alguma árvore com frutos, coisa muito frequente naquele tempo. O crepúsculo depressa desapareceu e a noite desceu rápida. Ficámos desorientados e com frio. Como é que íamos fazer se nem sequer sabiamos acender uma fogueira? Fomos andando e luzes ao fundo acendeu-nos a esperança. Fomos dar a um acampamento. Digo acampamento porque eram mais tendas e barracas que casas. Depressa deram connosco e nós também estávamos desejosos de ser descobertos. Rápidamente viram que andávamos perdidos e depressa chegaram à conclusão que andávamos fugidos, o que não era de admirar. Estávamos em Chelas, o que quer dizer que estávamos quase novamente na Casa Pia. De Chelas à Madre de Deus, onde fica o Maria Pia, era um pulo. Estávamos por detrás do asilo, quer dizer que fizémos uma volta redonda e quase regressámos ao ponto de partida. Alguém disponibilizou um automóvel para nos levar de volta. Ainda tenho o carro na minha memória. Era aquilo que hoje se chama uma Station ou uma Van, com cromados e madeira a decorar. Provávelmente já só existem em colecções. Quando entrámos no asilo às tantas da noite parecia que estávamos a passar numa passadeira vermelha tal foi o alarido provocado. Do castigo nem vos falo, porque a sova que levámos até me envergonho de contar.

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