sexta-feira, 18 de setembro de 2009

As Fardas na Casa Pia:

Creio que naquele tempo todas as fardas eram feitas na Casa Pia. Tínhamos oficina de alfaiataria. Uma profissão com muita saída na altura. Todos nós tinhamos duas fardas. Aquela de trazer por casa e a outra de sair. A de trazer por casa era muito simples, mais simples era impossível. Era composta apenas por duas peças. Uma camisa azul clara e uns calções da mesma cor. Não me lembro de usar cuecas, provávelmente ainda não tinham sido inventadas. Andávamos sempre descalços, embora no inverno lá aparecessem, às vezes, umas sandálias abertas. Também havia oficina de sapataria. Havia sapatos mas era só para quando saíamos ou quando havia uma visita importante. Toda a roupa era igualzinha à da tropa, apenas modelos mais pequenos. Creio que alguma vinha das Oficinas Militares. Quanto à farda própriamente dita, a de sair, como se pode ver nos 5 rapazes na foto de cima e nesta do meu primeiro bilhete de identidade em 1959 era composta por 1 dolman fechado com botões de metal amarelo que tinham o desenho da Casa Pia e o tecido era de uma flanela azul escura. Na gola havia outro emblema mas este era cor de prata. Um par de calças do mesmo tecido. Um boné com o emblema da instituição. Por vezes usávamos um bivaque com emblema. Nestas ocasiões, em dias de festa, havia meias, ceroulas ou boxers e camisola interior. Mas isto era só em ocasiões muito importantes. E também havia um par de sapatos pretos.
Tratar da farda era uma tarefa árdua. As fardas estavam sempre fechadas à chave numa arrecadação à entrada da camarata. Só era aberta na véspera de eventos especiais, quando nos entregavam tudo para que nós tratássemos dela. Os botões estavam todos cheios de zebre devido a estarem fechados tanto tempo. Era preciso limpá-los com solarine enfiando os botões numa tala de madeira própria feita por nós. Era preciso engraxar os sapatos. Tinham que ficar a brilhar e às vezes era quase impossível porque o cabedal dos sapatos eram mais próprios para botas ensebadas. E ao deitar é que vinha a obra-prima. As calças tinham que ter vinco. Para vincá-las empregava-se o velho método militar. Na cama, debaixo do lençol debaixo, colocava-se com muito cuidado as calças molhadas no local que queriamos vincar. Puxava-se o lençol para cima. Tinha que ficar muito bem entalado e esticado para que não houvesse vincos a mais. Depois de tanto trabalho era só deitar em cima com mil cuidados, quase não nos podiamos mexer. O truque era mesmo não nos mexermos durante o sono. Só custa as primeiras vezes. É que, na manhã seguinte depois de nos vestirmos era passada uma revista a um por um. É claro que quem não se apresentasse devidamente fardado era castigado. O primeiro castigo é que o infractor não podia sair do asilo porque não estava devidamente apresentável. E isso era o castigo que mais nos custava. Quem passa o ano inteiro fechado entre muros não podia perder a oportunidade de sair. Sair era sempre uma diversão, fosse lá para o que fosse. Quando ao fim do dia voltássemos ao asilo era preciso arrumar tudo impecávelmente na dita arrecadação até haver uma outra oportunidade.

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