segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Os Americanos na Casa Pia:

Quando os barcos de guerra americanos entravam no porto de Lisboa era certo e sabido que os alunos da Casa Pia eram sempre convidados para visitar o respectivo navio. Nós próprios nos considerávamos seus protegidos ou afilhados. Não sei como é que isto começou nem qual a relação que a Casa Pia tinha com os americanos. A verdade é que nós íamos lá sempre visitar os navios. E não era só a visita. A Casa Pia recebia sempre grandes quantidades de víveres oferecidos pelo comandante. Eu sei muito bem do que falo porque me passaram pelos ombros muitos quilinhos das ditas ofertas. Lembro-me que um belo dia tive que carregar, eu e outros colegas, muitas caixas com latas de conserva dentro. Estas conservas eram muito diferentes das nossas. Por isso a curiosidade levou-nos a abrir uma caixa para ver o que era. Era manteiga em latas de aproximadamente 1 kg mais ou menos. Ficámos muito admirados. Primeiro porque não sabiamos ainda inglês, e depois de conseguirmos saber o que era mais admirados ficámos. Nós nem sabiamos o que era manteiga. Quem nos traduziu também nos explicou para que servia. Quer dizer que íamos passar a comer manteiga? Claro. Foi o que nos disseram. Então não é que ainda hoje estou à espera dessa manteiga? Muito mais tarde, com alguma paciência vim a saber que a dita manteiga entrou no circuito paralelo existente no Maria Pia. Quer dizer, todos os empregados ou quase todos, 'abotoaram-se' com a manteiguinha e nós nem lhe vimos a cor. Não quero mentir mas havia mais de 1 tonelada naquele armazém. A manteiga é só um exemplo. Acontecia com tudo o que entrava no Maria Pia como oferta e os empregados agredeciam. Ainda gostava de saber o que sentia aquela gente ao barrar com manteiga a sua deliciosa torrada, ainda por cima estrangeira. Creio que não sentiam nada porque havia uma frase generalizada no asilo que por vezes nos jogavam à cara: "Vocês não estão habituados a certas coisas". E não é que eles tinham razão?. Se nós nunca comíamos como é que podiamos estar habituados. Mas isto não é tudo. O grupinho de alunos que era convidado para visitar o navio (é preciso ver que nós éramos 600, não podíamos ir todos) chegavam ao asilo na volta contando maravilhas e nós muito interessados em saber tudo, como era normal.
Desde a comida estranha, hamburgas, cachoros, grossos bifes de vaca, batatas fritas, frango frito, pipocas, chocoletes, pastilhas elásticas e tantas outras coisas que às vezes até pensávamos se não haveria ali um pouco de exagero. Agora vejo que não porque já estive na América de costa a costa muitas vezes e sei como é a fartura americana. O que sempre me fez muita confusão eram algumas exigências dos americanos em determinados alunos com determinadas características. Porque é que eu nunca fui escolhido? Havia quem dissesse que era dor de cotovelo. Talvez fosse. Levei muitos anos a pensar nisso e só depois descobri que tinha a sua razão de ser. É que toda a gente sabia que eu agressivo com os 'abusadores'. E só então compreendi porque é que alguns deles vinham carregados de prendas e outros não. Nem todos se deixavam levar. Mas a minha grande frustação foi a de nunca poder beneficiar das ofertas que 'generosamente' eram feitas ao asilo. É bom que se saiba que nunca podia ter inveja dos que vinham carregados de prendas. Porquê? Porque no dia seguinte todas as prendas desapareciam. Todos nós sabíamos disso. Felizes dos filhos dos empregados que sorriam por nós.

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