terça-feira, 15 de setembro de 2009

O 'Gamanso' na Casa Pia:

Das coisas de que eu mais me recordo é, sem dúvida, o 'gamanso' diário. Toda a gente 'gamava' naquele asilo. Quando eu falo em 'gamar' não me refiro a grandes roubos. O que eu quero dizer é aquele "pequenino desvio" que diáriamente se fazia, sem ninguém dar por nada e que se tornava quase um dado adquirido. Eu explico melhor. Não sei quantos trabalhadores havia no Maria Pia naquele tempo, mas eram muitos. Trabalhadores que vinham de fora todos os dias e que regressavam a suas casas ao sol pôr. Era hábito e normal que todos os trabalhadores transportassem consigo a respectiva "lancheira". Uma pasta, normalmente de cabedal onde se acomodava o seu almoço. É claro que na volta vinha vazia. Mas não com os trabalhadores do Maria Pia. Eu cheguei a abastecer muitas dessas lancheiras. Depois de almoçar, o trabalhador entregava a sua lancheira, discretamente a alguém. Esse alguém, levava as lancheiras para diversos sítios, por vezes na cozinha, por vezes no armazém de víveres, outras na arrecadação do pão ou onde quer que fosse procuravam não chamar muito a atenção. Durante muito tempo eu fui ajudante do encarregado do depósito do pão. Ajudava a carregar o pão da padaria para o depósito. Ajudava a cortar o pão e a separá-lo para ser consumido nos refeitórios. Ajudava a colocar dentro das lancheiras e marmitas o respectivo pedaço de pão e outros haveres, tais como postas de bacalhau, uma ou outra batata, algum pedaço de toucinho salgado, algum chouriço. Enfim, não eram grandes quantidades mas somando tudo talvez fosse maior do que a minha imaginação. Mas de onde é que saía tudo isto? Da nossa panela, claro. Eu trabalhei um pouco por todo o asilo, em várias secções e tinha uma noção básica do movimento do asilo. E havia uma coisa de que eu tinha a certeza. O orçamento que o Estado fornecia ao asilo era muito razoável para a época. Se não fossem estes e outros 'gamansos' a vida na Casa Pia seria quase perfeita. Só faltava uma coisa essencial. O controlo por parte do Estado que não existia. Mas um dia... já se dizia lá na minha terra quando a minha mãe ía buscar água à fonte " Tanta vez o cântaro vai à fonte que um dia lá fica a asa". Foi o que aconteceu. Um belo dia todas estas actividades paralelas chegaram aos ouvidos do Sr. António de Oliveira Salazar, Presidente do Concelho de Ministros de Portugal. Querem saber o que aconteceu? No dia seguinte recebemos ordem para fazermos uma inspecção médica a todos os alunos. É claro que a maioria estava completamente tísica, se é que é este o nome. Hoje dir-se-ía sub-nutrida talvez. A partir daqui as nossas mesas do refeitório começaram a parecer um banquete para nós. Tudo mudou. Terminara o tempo das vacas-magras e veio o tempo das vacas-gordas. Infelizmente já veio no fim para mim. Eu saíria em breve da Casa Pia, mas contente por ter visto realizado um sonho. O sonho de poder comer, sem passar fome.

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