sexta-feira, 31 de julho de 2009

O Estádio das Salésias e a Casa Pia:

Quando eu era aluno do Asilo Nun'Alvares o antigo Estádio do Belenenses era mesmo ali ao lado. Creio que ainda hoje lá está. Abandonado. Quando havia jogos, especialmente do Sporting, era certo e sabido que a malta tratava de subir o muro ou ir para cima do telhado da vacaria. Eram os sítios onde se via melhor. O terreno fazia parte do Convento das Salésias, mas foi cedido pelo Governaor Civil de Lisboa ao Belenenses que construiu o seu campo em 25-4-1937. Aqui se realizaram a final da taça de Portugal e os jogos internacionais até ser construído o Estádio Nacional em 1944. Em 1946, a Câmara Municipal de Lisboa expulsou o clube para construir uma urbanização que nunca foi iniciada e o estádio ainda lá está completamente abandonado. Aos domingos, em dias de futebol, lembro-me que havia grande movimento e, embora não pudessemos sair, podiamos ver através dos gradeamentos. Naquele tempo o futebol não era como hoje. Dantes tudo era mais simples. Até as estrelas eram simples operários. Até que um dia, alguém embirrou que nós não deviamos ver os jogos. Parece que faziamos muito barulho. Era o que nos diziam e foi com estas mentes atrazadas que perdemos mais um divertimento. Talvez tenha sido, desde então que passei a ignorar o futebol. Hoje não vejo, não ouço nem vou ao futebol. Pura e implesmente ignoro-o. E tenho um filho ferrenho pelo Sporting. A Casa Pia foi-me moldando para a vida.



quinta-feira, 30 de julho de 2009

O Natal na Casa Pia:

O relato que vou fazer passou-se no primeiro ano da minha estadia no Asilo Nun'Alvares, e era assim quase todos os anos. Penso que hoje já não deve ser assim. Normalmente por alturas do Natal a Casa Pia recebia muitas prendas para distribuir pelos seus alunos. Geralmente eram ofertas de grandes empresas daquele tempo ou então peditórios e angariações de pessoas que se fartavam de trabalhar para que nós, quase todos sem família, tivessemos um brinquedo, pelo menos nesta data. O que vou contar não cabe na cabeça de ninguém, mas acontecia, aqui, na Casa Pia. As prendas eram-nos distribuídas na véspera de Natal, como manda a tradição. Nós ficávamos muito felizes. Eu recordo-me que os únicos brinquedos que tive antes, eram apenas as caixas de medicamentos do meu pai que dizia ser um "pópó". Agora imaginem a alegria de ter um brinquedo de verdade. Já não me lembro o que é que me calhou mas lembro-me que já não o larguei mais. Até dormia com ele. E não era só eu. Ninguém nos contrariava nestas alturas porque era costume o asilo estar cheio de visitantes que gostavam de ver a nossa felicidadade. Porém, no dia 26, tudo voltava ao normal, as visitas saíam e nós ficávamos sózinhos. O Preceptor, era assim que chamávamos às pessoas que cuidavam de nós, mandava reunir todos os alunos, debaixo de um grande alpendre mesmo em frente ao pátio do recreio. Formavamos, normalmente, em filas de 3, como na tropa. Mandavam que todos colocassem os brinquedos no chão. Feito isto, mandavam avançar a primeira fila, depois a segunda e por último a terceira. Isto era feito sempre antes de uma refeição, porque era mais fácil. Nós ficávamos a pensar que eles não queriam que fossemos comer com os brinquedos e que nos davam depois da refeição. Quando terminava a refeição e era dada a ordem de dispersar todos corríamos em direcção ao alpendre, onde tinhamos deixado os brinquedos. Era a maior decepção das nossas vidas. Todos choravam baba e ranho por todos os lados.


A Escola na Casa Pia:

Quando eu entrei no Asilo Nun'Alvares perguntaram-me em que classe eu andava lá na terra. E eu respondi imediatamente: na 2ª. E então fui colocado na 2ª classe. Mas eu nunca tinha andado na escola. Eu já tinha alguns conhecimentos de leitura e até já fazia certas contas porque a madrinha do meu irmão cuidava de crianças em casa. Era uma creche daquele tempo. E eu andava sempre lá metido porque ela gostava muito de mim e eu gostava muito dela. Ela entretinha as crianças com imaginação. A melhor maneira de as entreter era contar histórias, ensinar a ler e escrever e isso ela sabia fazer muito bem. Naquele ambiente eu fui aprendendo não só porque a Dª Fernanda era uma simpatia, muito meiga, muito preocupada com todos mas também porque eu tinha uma curiosidade danada por aprender. Era assim, naquele tempo. Tudo muito simples. Aqui, no Asilo Nun'Alvares, a vida até não era má, talvez porque éramos mais pequenos, tinhamos muitos mais cuidados. Embora houvesse um disciplina muito rígida, havia outros cuidados. As camaratas eram mais pequenas, as casas de banho eram melhores, embora ainda circulasse a ideia de que "de pequenino se torce o pepino", assim tomávamos banho de água fria. De vez em quando até havia cinema. Naquele tempo era novidade e, como não podia deixar de ser os filmes muito divertidos do Rato Mickey já nem nos museus hoje existem. Os três anos que ali passei foram dos mais felizes de toda a Casa Pia. Mas só lá podiamos estar até aos 12 anos. Assim, quem tivesse a 4ª classe até aos 12 anos era transferido para a Secção Pina Manique, situada por detrás do Mosteiro dos Jerónimos, a dois passos daqui. Quem não tinha a 4ª classe era recambiado para a Secção de Maria Pia, no Beato. Foi esta última que me calhou porque o tempo que estive no Nun'Alvares não chegou para eu fazer as 4 classes. Azar o meu. Foi dos maiores desgostos que tive. Eu queria continuar a estudar mas ninguém se importava com isso. Tive que gramar o Maria Pia.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Um Marmelo na Casa Pia:

O Marmelo sou eu. Pertenço à família dos Marmelos. Lá na terra o meu avô materno era conhecido por Marmelo. Não sei donde lhe veio a alcunha. O meu avô era ali dos lados de Fátima. Era um homem muito trabalhador, muito reservado e não sabia ler. Tinha um negócio, uma Padaria que ainda existe, uma horta enorme e ninguém o enganava. Trabalhava que se fartava. Lembro-me dele sempre a trabalhar. Costumava dizer que estivera presente no milagre de Fátima, em 1917. Lembro-me que contava os promenores com exactidão e vagareza. O que é que isto tem a ver com a Casa Pia? Eu explico! Certo dia houve um grande alvoroço lá no Asilo. Alguém tinha feito uma grande patifaria. Não me perguntem o que foi porque já não me lembro. Mas lá que deve ter sido grave, disso não tenho dúvidas porque o alvoroço foi tal que os padres (havia muitos padres na Casa Pia) resolveram fazer algo inédito. Levaram todas as crianças para a igreja. Estou a falar da Antiga Igreja da Visitação no Convento das Salésias que nós frequentavamos. Os padres armaram uma encenação. Disseram-nos que nos íam confessar a todos para saberem quem era o culpado. Prometeram não nos fazer mal nenhum e se o culpado se sentisse arrependido podia dizer. Claro que ninguém se acusou. Começaram então a confessar um a um. Quando chegou a minha vez, eu, que tinha um medo danado dos padres, disse que tinha sido eu. O padre deu-me um grande sorriso e gritou: Alto que já temos o Marmelo. Mal sabia ele que eu era realmente um Marmelo. Sempre fui ateu mas creio que foi aqui que começei a sê-lo. Gosto de entrar em igrejas para apreciar a arte que elas contêm. Nada mais. Sou doido por azulejos e a grande maioria deles estão nas igrejas. O gosto pelos azulejos também começou na Casa Pia porque ajudei a restaurar alguns, mais tarde, no Maria Pia. Depois conto.

Eu e Gago Coutinho:

Quando eu era aluno do asilo Nun'Alvares ali na Rua Casas do Trabalho, que agora se chama Rua Alexandre de Sá Pinto, era costume sairmos acompanhados. Ainda hoje não me lembro muito bem o que nós íamos fazer mas o passeio era sempre o mesmo. Íamos em direcção à Ajuda mas não me consigo lembrar onde. Do que eu me lembro muito bem é que a meio caminho, sempre num parque ou jardim havia um velhote que se metia sempre connosco e nós com ele porque já o conheciamos. Gostava muito de conversar connosco e nós dávamos-lhe trela porque não tinhamos muitas oportunidades de conversar com estanhos. O curioso é que os passeios eram sempre interrompidos neste local como se fosse uma paragem obrigatória. Não me lembro do que conversámos, mas sendo nós crianças, nenhuma de nós podia ter mais de 12 anos, visto que era a data limite para sair dali, mas suponho que seria apenas saudades da vida que o dito velhote teria. Este velhote morreu em 1959 com 90 anos, portanto, pelas minhas contas, isto deve ter-se passado no começo da década de 50. Noto ainda que o velhote era muito simpático e uma pessoa a quem todos tiravam o chapéu. Naquele tempo toda a gente usava chapéu. Tirar o chapéu a outra pessoa era um acto de boa educação e um sinal de muito respeito por essa pessoa. Depois, nas escolas do Estado Novo, podia não se ensinar grande coisa mas enaltecia-se muito os seus heróis e este velhote era nada mais nada menos do que GAGO COUTINHO.

A Adaptação à Casa Pia:

A adaptação ao asilo não foi muito difícil. O pior era a liberdade, ou melhor, a falta dela. Com os colegas, havia um problema: os mais velhos. Os mais velhos exercem sempre uma grande pressão sobre os mais novos. Creio que é assim em todo o lado. E durante todo o tempo que passei na Casa Pia sempre assim foi. Até que cheguei eu também a mais velho. Provavelmente devo ter feito a mesma pressão sobre os mais novos. Disso não tenho grandes recordações a não ser um caso muito especial. Talvez por ser o mais novato no asilo eu andava constantemente a ser alvo de chacota por um colega mais velho. Aturei aquilo durante muito tempo. Eu sou muito calmo e reservado. Mas não sei porquê, naquele dia, chegou-me a mostarda ao nariz. Não sei como, mas apliquei um valente murro mesmo na tromba do coitado. Foi remédio santo. Além de nunca mais me chatear ainda passei a ser visto como alguém que era preciso respeitar.
Mas adiante. Aqui neste asilo, parece que hoje lhe chamam Colégio mas para mim foi e será sempre um asilo, deram-me um número. Eu era apenas um número, como todos. Sempre soube o número de cor mas não o vou dizer. Aqui, muito poucos eram tratados pelo nome, quase toda a gente era o número tal e tal. Mas eu sempre fui conhecido pelo Valentim. Talvez porque naquele tempo e ainda hoje, não era um nome vulgar. E o tempo corria.

terça-feira, 28 de julho de 2009

O Asilo de Nun'Álvares da Casa Pia:

Em 1927 foi ocupado o antigo Convento das Salésias pelo Refúgio e Casas de Trabalho, instituição social que visava ajudar os necessitados (precisamente na Rua das “Casas do Trabalho”). Mais tarde essa instituição foi convertida no Asilo de Nun’Álvares para crianças desfavorecidas, posteriormente propriedade da Casa Pia. Foi aqui que eu vim parar. Como cá cheguei não sei explicar mas ainda há pessoas na minha terra (Chamusca-Ribatejo) que me conseguem dar algumas dicas. A minha mãe tinha 5 filhos, eu sou o 3º e o meu pai, tipógrafo à porta fechada lá na terra faleceu de tuberculose, parece que derivado às tintas. Foi preciso morrer mais alguns para permitirem que se abrissem as janelas. Eu devia ter uns 6 anos quando ele morreu. A minha mãe ficou muito aflita com 5 filhos nos braços e sem meios de subsistência. Ainda por cima foi um bocado regeitada pela família por ela ter casado com um algarvio de Tavira. Alguém pediu a alguém que tinha influência na Casa Pia e lá vou eu. Era um alívio para ela. O meu irmão foi para casa de uma tia, em Angola, onde já estava outra irmã minha, que só regressou como "retornada". Outra irmã casou e foi para o Brasil e ainda lá está. A mais nova também foi para casa de outra tia em França e que também ainda lá está. Aqui no Nun'Alvares estive uns três anos.

A ENTRADA NA CASA PIA:

Há coisas que a nossa memória nunca apaga. A minha entrada na Casa Pia é uma delas. Eu era uma criança, tinha uns 6 ou 7 anos, pelas minhas contas foi em 1949, mas lembro-me como se fosse hoje. Fui acompanhado pela minha avó materna. A separação não foi difícil, apesar de criança eu era muito reservado e como fui criado quase na rua era muito independente. O episódio que mais me marcou é que na manhã seguinte quando fui tomar o pequeno almoço no refeitório colocaram-me á frente um prato cheio de papas de milho. Era assim uma espécie de Xarém mas sem absolutamente nada. Nem sequer leite. Era apenas a farinha de milho cozida em água. Não me deram mais nada, porque para ter direito a pão e café era preciso primeiro comer as papas. E eu não comi. Aquilo era muito estranho para mim. E fiz beicinho. Mas não o demonstrei. Nem ninguém me perguntou porque é que eu não comia. Apenas me disseram: Se não comes a papa não há mais nada. E lá fui à vida de barriga vazia. Há hora do almoço serviram toda a gente menos eu. Depois de todos estarem servidos colocaram-me à frente o mesmo prato de papas do pequeno almoço. Ninguém ria nem troçavam de mim. Parecia que todos se sentiam comprometidos. Mais tarde compreendi porquê. É que quase todos passaram pelo mesmo. É preciso compreender que quase todos nós eramos filhos da rua, todos estavamos habituados a passar fome. Por isso, o mais lógico era atacar a comida. Mas havia uma coisa que nos impedia de o fazer, e isso eu só mais tarde é que compreendi, depois de observar muitos outros. Era o nosso sentido de liberdade. Tinhamos perdido a nossa liberdade. Alguém nos obrigava a comer quando, normalmente, éramos nós que lutávamos para arranjar comida. Talvez isto pareça estranho a muita gente. Gente que nunca passou por isto. Mas eu estava a sentir esta mudança. E não comi. Desta vez também não comi. Lanche era coisa que naqueles tempos não existiam, especialmente para os pobres. De maneira que veio a hora do jantar e aconteceu exactamente tudo da mesma maneira. Espetaram com o maldito prato à minha frente. As papas de milho já apresentavam rachas e começavam a secar. Eu devo ter engolido em seco porque o meu estômago já reclamava. Desde o dia anterior que não comia nada. Até lambi o prato, e não é que depois de ter comido as papas ainda me deram o almoço e o jantar!