quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O Cinema no Maria Pia.

Na década de 50 o cinema era um acontecimento social de grande importância. A indústria cinematográfica ainda espantava muita gente que não perdiam os grandes filmes da atualidade e absorviam as conversas de todos em todos os lados.  Entretanto, no Maria Pia, ainda continuávamos a ver um cinema muito antigo quase sempre a preto e branco. As sessões de cinema no Maria Pia não eram muitas mas por vezes havia algumas. Quando era anunciado que ia haver cinema era uma grande euforia mas também uma grande trabalheira. O cinema era progetado no pavilhão de desportos. Quando terminávamos o jantar, tinhamos que carregar com os compridos e pesados bancos de madeira do refeitório para o pavilhão, que, se não estou em erro, talvez fossem uns bons 200 metros. Só depois de tudo devidamente arrumadinho é que começava a sessão. Primeiro tínhamos que gramar com os documentários do Mundo Português, ao estilo do Fernando Pessa, onde toda a política do Estado Novo tinha que ser apresentada. A seguir havia um intervalo e depois é que vinha o melhor: os desenhos animados. Por vezes eram muito antigos, mas quando tinhamos a sorte de nos calhar o Tom & Jerry, o Pica-Pau, o Pato Donald e tudo o que fosse da Wall Disney era um completo delírio. Só mais para o final da década de 50 é que começaram a aparecer os filmes e mesmo esses já eram muito velhos lá fora. Por isso a malta saltava o muro para ir aos grandes cinemas de Lisboa ver as grandes novidades. Quando terminavam as sessões de cinema no pavilhão, toda a gente tinha que carregar com os bancos de volta para o refeitório. A maior parte das vezes os filmes não valiam o esforço. Mas era o que havia. Mesmo assim tinhamos conversa para a semana toda acerca dos filmes, dos atores, das técnicas e do espanto dos filmes coloridos. Se os desenhos animados fossem bons íamos para a cama muito excitados, contentes e certamente sonhávamos com o cinema. 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A minha vinda para Lisboa.

Alguém ainda consegue imaginar o cidade de Lisboa no ano de 1949? Foi nesse ano que entrei no Nun’Álvares, vindo da Ribatejo na companhia da minha avó. Foi ela que me veio entregar à Casa Pia. Vivia numa família em que o meu pai tinha morrido apenas com 33 anos, de tuberculose porque era tipógrafo e trabalhava à porta fechada num ambiente em que as tintas naquele tempo deixavam muito a desejar. A minha mãe ficou com 5 filhos nos braços e viu-se na obrigação desesperada de ter que se desfazer deles… para o bem de todos. As mães sempre pensam em nós. Eu fiquei zangado com ela por me ter abandonado e levei muitos anos até compreender que ela tinha toda a razão do Mundo para o fazer. Cada um seguiu o seu caminho. Uma para o Brasil que ainda lá está, outra para França onde também ainda se encontra, outra ainda para Angola e só não ficou lá porque se viu obrigada a ‘retornar’ e eu fui despachado para a Casa Pia. Apenas o meu irmão mais velho ficou com ela porque já trabalhava. Naquele tempo ter filhos era uma garantia de reforma, mas não com crianças nos braços. Ela fez muito bem em ficar com ele porque ele foi o seu amparo para o resto da sua vida. Apesar de tudo, ela decidiu sábiamente. Eu, ao vir para Lisboa, perdi as minhas raízes, não só com a terra como com a família. A minha mãe já morreu e eu só me dou com o meu irmão. Todas as outras irmãs se foram com o tempo e especialmente com a distancia. 
Da Chamusca a Lisboa, naquele tempo eram 120 kms de autocarro com paragem em Santarém e no Cartaxo. Lembro-me perfeitamente do autocarro estar parado no meio da ponte enquanto alguns trabalhadores consertavam uma das traves de madeira que serviam de piso.Eram precisas muitas horas para chegar a Lisboa e era uma aventura tremenda, mas como eu era criança, tudo era novidade. Imaginem agora ao chegar a Lisboa. Na minha terra só havia um homem que tinha automóveis, vários, porque era o dono de quase tudo por lá. E o autocarro onde eu vinha entrou por Sacavém e percorreu toda a Avenida Almirante Reis quase até ao Martim Moniz onde se situava a Garagem e fim de viagem. Foi a partir daqui que a minha memória começou a escrever um diário… diariamente. Os milhares de cavalos puxando carroças à mistura com muitos automóveis, os ardinas gritando e carregando pesados alforges com jornais, toda a cidade gritando, buzinando, as varinas apregoando pelas ruas e eu ficando pregado ao chão olhando com os olhos muito abertos sem compreender onde me vinha meter e saltitando para evitar as bostas dos cavalos, assim cheguei à Capital. A minha avó também nunca tinha saído lá da terra mas já trazia o trajeto todo decorado na ponta da língua porque depressa me vejo a entrar pela Rua das Casas de Trabalho como na altura se chamava e eis-me a entrar num mundo completamente diferente de tudo o que eu imaginava. Tinha pela frente o Asilo D. Nuno Álvares Pereira. Lembro-me de atravessar o pequeno jardim e ao entrar sermos recebidos por uma mulher que se mostrou muito simpática. A minha avó devia estar a sentir o tal aperto na garganta que só ela sabia e eu compreendi isso só mais tarde, porque naquele momento eu apenas sentia todas as emoções juntas de estar num mundo diferente.  

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Saltar o muro no Maria Pia.

Como já disse várias vezes, pular o muro era uma arte e não era para todos. Melhor dizendo não era permitido a todos. Apesar de ser proibido pular o muro, na verdade pulávamos o muro talvez, precisamente por ser proibido. Toda a gente sabe que os mais velhos tinham uma grande influência e autoridade sobre os mais novos. Os mais novos seguiam estas regras porque não tinham capacidade para decidir e atuar sozinhos. Como raramente saíamos de dentro daqueles enormes muros a curiosidade de saber o que havia pela cidade, tão perto de nós mas tão longe de alcançar, durante anos crescia dentro de nós uma curiosidade tão grande que era muito difícil resistir ao apelo da cidade. Eu estou convencido de que saltar o muro era uma prática tão antiga como a própria Instituição. Nenhum animal gosta de estar fechado. Por isso um prisioneiro é capaz de dar a vida por um estratagema de fuga, por muito ténue que seja. Então a coisa fazia-se mais ou menos assim. Todos os rapazes mais velhos saltavam o muro para se embrenharem na cidade, cada um com os seus motivos. Uns porque queriam ver a família, outros porque queriam ir ao cinema, alguns já frequentavam o putedo do Bairro Alto e até havia quem quisesse vir cá fora só para apanhar ar, especialmente aqueles que não tinham família, o que era a grande maioria. Saltava-se o muro em grupos de poucos alunos que normalmente levavam um ou dois alunos mais novos. Porque os mais novos não sabiam andar sós na cidade, estes eram protegidos pelos mais velhos que não os largavam por nada. E assim aprendíamos a conhecer a cidade. Perto da Padaria e ao lado da Serralharia havia um portão de ferro que estava sempre fechado. Este era o lugar mais fácil para os iniciados. Na parte de dentro havia uma pequena central eletrica que era fácil subir para o seu telhado. Uma vez ali em cima tinha-se uma ótima vista sobre toda a área que nos permitia  descer agarrados aos ferros do portão e à pedra dos lados, em plena segurança. Saltei por lá milhares de vezes mas uma vez quando vinha a descer já do lado de fora, estava um preceptor para me ajudar a descer. Logo por azar tinha que passar alguém por um local deserto e não podia ser outro senão um preceptor. Por vezes também havia azares. Naquele tampo não havia prédios em frente, era um terreno baldio e apenas a linha dos eléctricos  passava por ali, mas de longe a longe. Mas se era difícil sair, o mais dificil era entrar. Tínhamos que arranjar muitos estratagemas para conseguirmos entrar e o mais fácil era mesmo pelo portão principal. Bastava conseguir distrair o porteiro ou arranjar uma manobra de diversão. Para toda esta odisseia quase sempre ficávamos sem jantar. Como se comia cedo e tempo era coisa que não tínhamos muito para percorrer a cidade é claro que chegávamos sempre depois do jantar e havia ainda o fato e ao entrarmos depois do anoitecer facilitava muito a entrada. Se já era muito divicil aguentar a fome durante tantas horas do jantar ao pequeno almoço, agora imaginem o que não era passar sem jantar. Mas o salto valia tudo. Levávamos toda a semana a imaginar e a preparar o salto para o domingo, porque durante a semana faltar às aulas ou à oficina ainda se dava um jeito o pior eram as formaturas que eram religiosamente controladas. Quando faltava alguém, depressa se dada pela sua falta. Quanto mais não fosse havia os bufos (que eram muitos) ou alguém que se aproveitava para se vingar de outro. Eu cheguei a dar o salto só para ir tomar banho à Praia de Pedrouços (onde aprendi a nadar) só porque, na nossa cabeça, não havia outra mais perto. Foram as primeiras grandes caminhadas da minha vida. Alguém consegue imaginar o que é atravessar toda a cidade de Xabregas até Pedrouços? E voltar para trás.