sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Odiar Espanha na Casa Pia:

Sendo o Estado Novo português e o Regime Franquista espanhol dois Estados da direita fascista, porque é que se odiavam tanto? Seria pelo passado? Ou seria pela ignorância dos dois povos? Ainda hoje não consigo compreender. Ainda hoje existe esse tal ódio. Mas hoje há um motivo. Os espanhóis estão a comprar Portugal aos poucos. Há quem tenha a certeza de que um dia os espanhóis vão conseguir ter tudo nas mãos. Será? Mas alguns acham que não faz mal, porque um dia, surgirá alguém que consiga correr com os espanhóis. Será? Sinceramente, dúvido. Os tempos são outros, dizem outros. Mas as intenções espanholas parecem as mesmas. Serão? O que eu sei é que as novas gerações não se preocupam nada com isto. Porquê? Será que os espanhóis também contam com isto? É muito provável.
Há dias dei comigo a pensar nisto e a minha memória recuou no tempo. Porque razão é que eu ainda não consigo gostar dos espanhóis? Bom, esta pergunta é simples de responder. Eu fui criado na Casa Pia e lá, ensinaram-me a odiar Espanha. O porquê é que não consigo entender. No dia-a-dia tudo servia para dizer mal de Espanha. Levávamos sempre com o velho ditado: "De Espanha, nem bons ventos nem bons casamentos". Mas outra coisa que eu não consigo entender é porque razão se falava tanto de Espanha. Nós não tinhamos nenhum contacto com Espanha ou com espanhóis. Seria politica. Talvez. Apesar dos regimes serem aparentemente iguais, ainda havia muitas divergências e nós não sabiamos disso nem de nada. Acreditávamos piamente em tudo o que nos diziam. Ainda hoje sinto que fui muito mal educado pela Casa Pia. Qualquer coisa de bom ou grandioso que acontecia em Espanha diziam-nos logo: Não admira, Espanha é cinco vezes maior que Portugal. A grandesa territorial espanhola sempre serviu de desculpa para o acomodar dos portugueses. Até no futebol sempre se viu isto.
Mas a minha pergunta principal é: Porque é que eu ainda hoje continuo a odiar os espanhóis? Eu vou e sempre fui a Espanha diversas vezes. Neste momento até estou a programar mais uma ída a Sevilha. Eu gosto muito de ir a Espanha, gosto de ver as suas paisagens, gosto de ver os seus monumentos, azulejos, candeeiros e até as suas igrejas e no entanto nem sequer sou católico. Mas quando me esbarro com o povo, fico de pé atrás. Porque será? Primeiro, a língua incomoda-me. Depois, a brutalidade espanhola também me incomoda. Mas porque é que me incomoda a brutalidade num espanhol. E note-se que também as mulheres as acho brutas. Talvez pelo tom abrutalhado com que falam a sua língua. É o que eu sinto. Eu viajei por todos os oceanos, por todos os continentes, por quase todos os países e nunca senti nada igual por outros povos. Porquê? Só encontro uma explicação: Fui educado de uma maneira errada pela Casa Pia.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Andar de Corrimão na Casa Pia:

Andar de corrimão era um desporto bem radical naquele tempo. Parece que hoje gostam mais de lhe chamar Escorregar de Corrimão. Eu prefiro Andar de
Corrimão porque foi assim que sempre andei. Havia diversos sítios no Maria Pia onde nos podiamos divertir a andar de corrimão. O divertido é que eram sítios de pouco controlo pelo que quase sempre estávamos sózinhos e à vontade.
Organizávamos verdadeiras competições. O Maria Pia é um Convento enorme e muitos dos corrimões eram (e devem ser) de pedra. Mas só uma pedra polida pelo tempo e pelos nossos calções se tornava escorregadia suficiente para podermos alcançar a velocidade desejada. É claro que tinhamos a nossa técnica e os nossos cuidados para garantir a nossa segurança, de tal forma que ensinávamos os mais pequenos com muito cuidado. Tudo porque não queríamos que um qualquer acidente pudesse proibir a prática deste desporto interno. E havia verdadeiros campeões nas descida em corrimão. Os acidentes eram raros, mas eu fui o protagonista do maior de todos. Um belo dia, o entusiasmo fez-me esquecer a segurança e aí venho eu do primeiro andar direitinho ao chão. O chão era (e ainda deve ser) de pedra. Ainda estou para saber como é que eu caí mas a verdade é que não parti nada. Lembro-me que fiquei muito tonto. Fui levado para a enfermaria mas quando viram que não tinha nada partido mandaram-me embora. Naquele tempo era assim, quando não se parte nada tudo está bem. Mas recordo-me muito bem que ao jantar eu via dois pratos á minha frente e nos dias seguintes não andei lá muito católico. Será que ainda hoje se anda de corrimão lá para aquelas bandas?

terça-feira, 25 de agosto de 2009

O Desporto na Casa Pia:

O Desporto na Casa Pia era "tudo ou nada". Quer dizer, havia desporto mas não podiamos escolher. Tinha que ser como eles queriam. Eu gostava de voleibol mas embirraram que eu devia jogar futebol. Como eu também era teimoso resolvi fazer tudo ao contrário para ver se me deixavam jogar vóleibol. Mas saiu-me o tiro pela culatra. Quando me punham a jogar futebol eu não me mexia e quando a bola vinha ter comigo eu chutava sempre ao contrário. Depressa perceberam que eu estava a fazer beiçinho e depressa resolveram o problema. Fui completamente banido do desporto. Nunca mais tive autorização para integrar qualquer equipa, fosse a sério ou a brincar. A prepotência no seu maior. Só mais tarde vim a saber que o voleibol era jogado por uma determinada élite lá dentro do Maria Pia. Na verdade, o desporto não me interessava muito. A minha verdadeira ambição era estudar. Mas parece que eu batia sempre à porta errada. O desporto foi só uma delas. Mas no meu tempo até havia muito desporto, só que estava todo muito mal estruturado. Ainda me lembro que foi feito um ringue de Hóquei em Patins lá no Maria Pia. O Hóquei era muito popular naquele tempo devido às extraordinárias equipas nacionais que nos incutiam a glorificar. Mas o ringue foi construído por nós. Todos nós trabalhámos arduamente para erguer um modesto ringue que de ringue só tinha um excelente piso de cimento muito liso. A mentalidade tacanha da época considerava que para se andar em patins só era preciso um bom piso. O resto teria que ser feito pela carolice de alguns. E foi a carolice de outros que também nos fez trabalhar muito para fazer uma piscina. Aproveitando um tanque velho desactivado que lá havia dentro do recinto do recreio, alguém se lembrou que dava uma óptima piscina. E deu. Mão-de-obra era coisa que não faltava. E nós aproveitámos bem todo o prazer que nos dava a piscina. Não sei se ainda existe mas a piscina sempre foi muito importante para nós. Não só pelos banhos e mergulhos que dávamos mas também porque atrás da piscina era o único local do recreio que estava fora da visão do perceptor que vigiava a grande área do recreio. Era o único local onde a malta podia fazer certas coisas como fumar um cigarrinho. Desporto, no Maria Pia era tudo.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A Visita de Café Filho a Portugal:

Em 1955 o 'Tamandaré' foi designado para conduzir o presidente da República em visita oficial a Portugal. O roteiro da viagem foi Rio-Recife-Casablanca-Lisboa. O então presidente João Café Filho embarcou no navio em Casablanca, Marrocos, sendo recebido pelo terceiro comandante do navio, capitão-de-mar-e-guerra Paulo Antonio Telles Bardy, em 21 de abril de 1955. A escolha do ‘Tamandaré’ para transportar o presidente da República, então Café Filho, para uma visita a Portugal, onde chegou em 22 de abril de 1955.Em Lisboa, a capital portuguesa, o ‘Tamandaré’ recebeu escolta de honra dos contratorpedeiros (destróieres) portugueses ‘Dão’, ‘Tejo’ e ‘Vouga’ e do navio-aviso ‘Nuno Tristão’. O Presidente Café Filho foi recebido no Cais das Colunas, no Terreiro do Paço pelo General Craveiro Lopes.
Eu lembro-me que estive neste acontecimento. Mas foi um bocado esquisito. Sei que era de noite que nos acordaram. Fizemos toda a viagem de noite e sei que nos deram umas bandeirinhas, provavelmente de Portugal e do Brasil e depois fomos acenar e gritar para o aeroporto. Seria já a partida? Talvez, visto que ele chegou de barco. Era assim o Estado Novo. Serviam-se de nós para certas coisas. Mas esqueciam-se de nós noutras. Como a mais elementar de todas as necessidades. A comida. Lembro-me bem deste dia porque me parece que foi a única vez que saí de noite da Casa Pia. Sei que era o Café Filho, nunca me esqueci do nome, mas só muito mais tarde é que soube que ele era Presidente do Brasil. Não era fácil de esquecer porque éramos poucos, o suficiente para ocupar um autocarro dos antigos que não devia levar mais de 30 pessoas. É claro que durante muito tempo foi motivo de conversas. Nós tínhamos que explicar aos outros tudo ao pormenor. Coisas de crianças.

Carecadas na Casa Pia:

Assim que qualquer aluno entrava na Casa Pia era de imediato submetido a uma completa desinfecção corporal e indivudual. Quatro ou cinco alunos mais velhos e já muito experientes rodeavam o novato, tiravam-lhe toda a roupa sem qualquer pudor. Normalmente isto era feito num claustro onde havia perto uma casa da banho com chuveiros. A casa de banho não era utilisada neste caso. Uma mangueira vinda de lá resolvia o problema. O novato era o centro das atenções não só dos que íam executar o trabalho de limpeza como o da assistência. Quero dizer, todos os outros alunos eram espectadores atentos. Era um autêntico circo montado. Mas o que é que despertava tanta atenção neste ritual? Nem sequer éramos obrigados a assitir. O que acontece é que todos nós já tinhamos sido publicamente humilhados anteriormente. Era a nossa vez de nos tornarmos espectadores. E sentíamos prazer nisto? Não. Nem tanto, embora um ou outro manifestasse o seu agrado. Mas havia outras ocasiões em que situações destas se tornavam em pura histeria. A cerimónia da primeira vez era diferente. Era mais silenciosa. O novato era escovado de alto a baixo. Bem esfregado. Havia alguns que vinham da rua onde sempre viveram que traziam no corpo autenticas porcarias que nem com pedra pomus se conseguia tirar. Haviam muitos que eram submetidos a várias sessões de limpeza. Mas havia um momento de excepção. Era a carecada. Normalmente quase todos traziam fartas cabeleiras. Quanto maior fossem os cabelos, maior era a satisfação da plateia. Aqui a malta gritava. Não tanto contra o novato, mas sim contra a humilhação por que todos passavam. Creio que a raiva de ter sido 'pelado' sem autorização nos fazia gritar. Era essa raiva que nós expressavamos. Ainda hoje uso o cabelo muito curto. Foi um hábito que me ficou para sempre.

domingo, 23 de agosto de 2009

A Morte de Carmona na Casa Pia:

O Marechal António Óscar de Fragoso Carmona exerceu o cargo de Presidente da República Portuguesa de 15/3/1928 a 18/4/1951.
Lembro-me perfeitamente que quando ele morreu a sua morte foi muito falada na Casa Pia. Todos os dias ele era mencionado por perceptores, professores e restante pessoal. Havia um clima de grande consternação é certo, mas também uma grande dúvida quanto ao futuro. O Presidente estava à tanto tempo no cargo que as pessoas já se tinham 'acomodado'. Agora vinha uma grande incerteza. E essa incerteza só acalmou 4 meses mais tarde quando foi eleito (ou devo dizer 'nomeado'?), para Presidente um homem da Aviação: O General Craveiro Lopes que eu tive o prazer de servir uma década depois. Mas esta situação de 'acalmia' era muito boa para nós, os alunos. Todos estavam apreensivos quanto ao seu futuro que nos deixaram um pouco em paz. A ignorância do povo era tal que todos pensavam que os seus 'tachos' estavam ameaçados. Todos tinham essa noção. E nós aproveitámos. Procurávamos tirar partido das situações que se apresentavam. Digamos que estávamos a cantar 'de galo'. Mas há sempre o reverso da medalha. Quando a situação estabilizou pagámos a triplicar toda a nossa ousadia. Passaram a ser mais frios os banhos de madrugada, menos comida, mais disciplina, menos horas de recreio, mais trabalho, algumas chibatadas. Sim, chibatadas. As chibatadas não eram permitidas mas também não estavam totalmente banidas. Havia sempre um perceptor que de vez em quando arranjava uma caninha-da-índia (que hoje chamam bambú) porque não partem com tanta facilidade e chegávam-nos a roupa ao pêlo e roupa, era coisa que tinhamos pouca. Lembro-me de um professor de desenho que tinha sempre na sala de aula uma vara com quatro metros. Sentado na sua secretária nunca se levantava porque chegava a todos com facilidade. Agora imaginem. Para nós, mudar de Presidente não nos trouxe nada de bom. A mudança só chegaria anos mais tarde e foi graças ao Dr. Salazar que a nossa vida melhorou. Depois conto, na devida altura.

sábado, 22 de agosto de 2009

O 28 de Maio na Casa Pia:

Marechal Gomes da Costa
A Revolução de 28 de Maio de 1926, Golpe de 28 de Maio de 1926 ou Movimento do 28 de Maio, também conhecido pelos seus herdeiros do Estado Novo por Revolução Nacional, foi um pronunciamento militar de cariz nacionalista e antiparlamentar que pôs termo à Primeira República Portuguesa, levando à implantação da auto-denominada Ditadura Nacional, depois transformada, após a aprovação da Constituição de 1933, em Estado Novo, regime que se manteve no poder em Portugal até à Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974. A revolução começou em Braga, comandada pelo general Gomes da Costa, sendo seguida de imediato em outras cidades como Porto, Lisboa, Évora, Coimbra e Santarém. Consumado o triunfo do movimento, a 6 de Junho de 1926, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, Gomes da Costa desfila à frente de 15 mil homens, sendo aclamado pelo povo da capital.
Todos os anos, esta era uma data de grande turbulência. Estavamos em pleno Estado Novo e por conseguinte a data era vivida de diferentes maneiras. Só havia duas maneiras. Ou se era a favor ou se era contra. É claro que nós na Casa Pia não entendiamos nada de nada. Ninguém tinha formação politica, nem mesmo o povo, quanto mais nós. Mas nós tinhamos a irreverência da idade. Nesta idade somos sempre do contra. Era o que nós fazíamos. Saltavamos o muro, e íamos para a Avenida da Liberdade. Era ali que tudo acontecia e nós não podiamos perder a festa. A festa era sempre a mesma, a polícia a carregar sobre o povo. E o povo a fugir. De vez enquando alguém caía. Azar. Era apanhado. É claro que eu sendo ainda muito novo, os mais velhos não permitiam que eu saltasse o muro. Por uma razão muito simples e não era para me protegerem. Era simplesmente para não os estorvármos. Mas quando começei a ter idade lá fui com os outros. Corri e fugi como os outros e atirei pedras. Era o máximo que podiamos fazer contra a polícia armada até aos dentes e com canhões de água. Com a água dos canhões era preciso ter muito cuidado. Diziam-me que se eu fosse molhado a minha roupa ficaria brilhante e seria fácil a Pide dar comigo. Nunca tive a certeza se era verdade, porque era tudo tão rápido e moviamo-nos constantemente para evitar aglomerações, visto que naquele tempo mais de duas pessoas juntas era considerado perigoso. Todas as portas da Avenida eram fechadas por razões óbvias. Não havia para onde fugir. Só havia dois caminhos: Avenida acima e Avenida abaixo. Lembro-me que uma vez corria tanto que estava quase a ser apanhado e não tinha onde me esconder. Apareceu-me o gradeamento do portão do Parque Mayer pela frente e ainda hoje estou para saber como é que eu voei por cima dele. Mas safei-me.

A Mocidade Portuguesa na Casa Pia:

Mocidade Portuguesa:
Esta organização (Havia a Mocidade Portuguesa para rapazes, e a Mocidade Portuguesa Feminina) fundada em 1936 com o seu Hino (Marcha) e farda própria, era acusada de ser um movimento fascista paramilitar copiado das Juventudes Italianas, e criada para propaganda do Governo (A fivela do cinto tinha um enorme S)A verdade é que para além de incutir aos jovens ideias «nacionalistas», valores religiosos cristãos, o culto aos heróis, o respeito à Pátria e à família, também realçava o valor da disciplina e da obediência, dava ensinamentos parecidos com os do Escutismo, preocupava-se com a cultura geral, e não descorava o lazer construtivo como aeromodelismo, vela, fotografia, atletismo, etc. Na M.P. nunca se incutiram ideias racistas ou de inimizade para com outras religiões.
Há dias encontrei numa velha revista estas palavras que definem bem o que era na realidade a Mocidade Portuguesa, e me fez lembrar esta Instituição. Pode parecer estranho mas na Casa Pia, tanto quanto me lembro, pouco se falava na Mocidade Portugesa. Mas não era completamente desconhecida. Eu lembro-me que cheguei a vestir a sua farda, muito poucas vezes, mas com muito agrado e pena por terem sido tão poucas. É que foi sempre por ocasiões de festas. Propaganda? Talvez. Lembro-me que desfilávamos fardados e isso dava-nos prazer. Sabem porquê? Já alguma vez pensaram no que era 600 alunos enclausurados todo o ano dentro de um Convento enorme com pouca actividade própria da nossa idade? Pois era. Vir para a rua marchar dentro de uma camisa e uns calções diferentes era uma alegria. Só o facto de sairmos de lá já era uma festa e daria conversa para muito tempo. Se éramos obrigados? Que ideia. Essa questão nem se punha. Sabiamos lá o que era isso. Nos acampamentos que fazíamos era uma alegria dormir em tendas. Não tanto por dormir quase ao relento. Isso nós sabiamos muito bem porque diáriamente dormiamos em grandes camaradas com enormes janelas sempre abertas de dia ou de noite, de inverno ou de verão. Agora dormir numa tenda do Exército em pleno pinhal da Caparica, era outra história. Ainda hoje, quando me ponho a recordar a Mocidade Portuguesa verifico que só tenho recordações boas. E há mais uma coisa que posso dizer. Nunca vi uma arma, fosse de que tipo fosse, nem nas minhas mãos nem nas mãos de ninguém. O que é que eu aprendi com a Mocidade Portuguesa? Uma coisa muito valiosa que a Casa Pia nunca me deu: ALEGRIA.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Uma Profissão na Casa Pia:

Naquele tempo toda a gente precisava de uma profissão tal como hoje toda a gente precisa de um emprego. Parece o mesmo mas não é. Dantes, ter uma profissão era ter prestígio, ser respeitado. Hoje, ter um emprego, é uma questão de sobrevivência. Por isso, era muito importante, a Casa Pia fornecer uma profissão aos seus alunos. Ainda me lembro sempre que eu mencionava ter sido aluno da Casa Pia as pessoas reagiam favoralvelmente e com uma certa inveja da sorte que eu tinha. Hoje quando digo o mesmo, as pessoas deitam-me um olhar de pena e chegam a dizer-me: Aquilo não deve ter sido nada fácil, pois não? E não foi. Não foi mesmo nada fácil. Mas o que a maioria me pergunta é: É mesmo verdade tudo o que se diz? E eu digo sempre: Não se diz nem um décimo das verdades. Aqui é que acaba mesmo a conversa. Niguém está preparado para ouvir tanta lamentação. O País não está preparado nem quer saber. Mas voltando atrás, quando eu entrei no Maria Pia, pela primeira vez, senti-me homem. E porquê? Porque ao saber que ía ter uma profissão sentia uma vaidade tão grande porque me dava uma sensação de já ser grande. Já ser homem. Quão errado eu estava. Mas era uma sensação agradável. O pior era quando me defrontasse com a realidade. Então meteram-me na Serralharia. Colocaram-me junto de uma bancada onde havia um torno. Deram-me uma barra de ferro pequena e uma lima e explicaram-me: Colocas a barra de ferro no torno. Apertas e com a lima vais desgastando o ferro. Era a primeira lição. E a primeira decepção. Aquilo não era nada fácil mas também não era nada do outro mundo. Primeiro tive que digerir o ambiente. A minha vista vasculhou tudo ao pormenor ao meu redor. Os novos, como eu, não estavam a gostar nada, especialmente porque tinham que sujar as mãos. Como se dizia, na gíria, naquele tempo, era uma profissão de "ferrugem". Às pessoas que tinham estas profissões sujas, chamavamos a "malta da ferrugem". Mas os meus olhos chegaram aos mais velhos. Aí o espanto era de boca aberta. O que eles já faziam do ferro era algo que me parecia impossível e tinha razão. Nunca consegui fazer mais do que uma simples chave. Só que as chaves naquele tempo eram um bom pedaço de ferro bem trabalhado. Mas em serralharia não deixava de ser apenas um objecto simples. E foi este objecto, as chaves, que me facilitaram muito a vida nesta minha clausura. Depois conto.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Do Nun'Alvares para o Maria Pia.

O Paço Real de Enxobregas, fundado em 1509 pela rainha D. Leonor, esteve instalado nos terrenos onde actualmente se encontra o Asilo D. Maria Pia, o Mosteiro da Madre de Deus e o Palácio dos Marqueses de Niza. O edifício, de uma só correnteza, começava na Rua da Madre de Deus (porta principal da Casa Pia) e estendia-se até ao largo Marquês de Niza. Foi morada de reis e nobres. Adquirido pelo Estado em 1867, serviu de asilo até 1942, ano em que esta instituição encerrou para dar lugar ao actual Colégio Maria Pia, numa das várias escolas sob a tutela da Casa Pia de Lisboa. Foi aqui que eu vim parar. Como já disse, por força dos costumes da Casa Pia eu não podia continuar no Nun'Alvares devido à idade. Assim, fui transferido para Xabregas. Aqui, no Maria Pia, tudo era diferente. A começar pela monumentalidade do edifício. Era tudo em grande. Assim como ir de Portugal para a América. Tal era a grandeza de espaço que, naquele tempo, eu podia andar de uma ponta para a outra e demorar quase um dia. O que eu mais adorava é que havia muitos sítios onde me podia esconder, sem que ninguém me visse, tanto fechado como ao ar livre. Mas também era perigoso. Podiamos ser atacados por outros mais velhos, com relativa facilidade e isso acontecia regularmente. Não só por pedófilos, naquele tempo nem sabia o que significava a palavra, como por alguma vingança ou ajuste de contas. Coisas muito normais que eu, com o tempo aprenderia por experiência própria.

sábado, 1 de agosto de 2009

A Festa do 3 de Julho na Casa Pia:

Este dia era dos mais felizes da nossa infância na Casa Pia. Porque era realmente um dia de festa. Era o dia de aniversário da Casa Pia. E já contava com quase dois séculos. São os quartéis velhos do Castelo de S. Jorge, adaptados pelo arquitecto Manuel Caetano de Sousa, que recolhem 13 órfãos e alguns mendigos na data da sua abertura oficial, a 3 de Julho de 1780, dia da festa da Rainha Santa Isabel, que é escolhida para padroeira da instituição. Neste dia tudo era diferente. Até a rotina mudava, o que era motivo mais do que suficiente para nos deixar eufóricos. Começava logo pelo pequeno-almoço. Até nos davam coisas que nem sabiamos o que era, como Leite, Manteiga ou Marmelada. O almoço era muito diferente do habitual. Como normalmente só comiamos carapaus ou chicharros, neste dia, quase sempre, aparecia o Peixe-Espada frito. Como não estávamos habituados a este peixe, nós adorávamos. Hoje, farto-me de pensar nisto. Como eles eram engenhosos. Bastava mudar de peixe e punham todos felizes. É realmente incrivel, mas porquê? Porque neste dia nós íamos marchar numa parada em frente ao Mosteiro dos Jerónimos. Tinhamos que começar a tratar das fardas muito cedo. Era preciso pôr tudo em ordem. No dia 3 era um grande alvoroço. Não era todos os dias que íamos sair sair do Asilo, especialmente num dia de festa. Íamos sempre a pé, todos juntos, formados por camaratas. Metiamos pela Rua da Junqueira, depois pela Rua de Belém até chegarmos em frente ao Mosteiro dos Jerónimos. Um dos grandes motivos de conversas era o facto de podermos ver o Asilo Pina Manique, que ficava situado mesmo atrás do Mosteiro. Todos nós tinhamos esperança de que um dia viessemos aqui parar. Todos sabiamos que o Pina Manique era muito melhor que o Maria Pia. E porquê? Porque no Pina Manique as profissões que lá se aprendiam eram muito melhores, por exemplo: ourives, contabilidade, e outras que até davam acesso à universidade. No Maria Pia eram as chamadas profissões da "ferrugem". Aquelas que mais sujavam: serralheiro, pintor, padeiro, marceneiro, etc. Aquelas que ninguém queria. Mas a decepção era grande. Nós íamos para uma parada, quase militar, tinhamos que estar muito tempo ao sol e acabavamos por nem sequer chegar aos portões do Maria Pia. Terminada a parada regressávamos de imediato ao Asilo. Nos dez anos que fiz esta parada só por uma vez consegui entrar no Pina Manique e foi porque me desenfiei. Eu tinha que matar a curiosidade. O que vi não me impressionou, mas como era diferente, lá fui pensando que era melhor. Voltávamos para casa e tudo voltava ao normal. Até que um dia a sorte espetou comigo no Maria Pia.