quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A minha vinda para Lisboa.

Alguém ainda consegue imaginar o cidade de Lisboa no ano de 1949? Foi nesse ano que entrei no Nun’Álvares, vindo da Ribatejo na companhia da minha avó. Foi ela que me veio entregar à Casa Pia. Vivia numa família em que o meu pai tinha morrido apenas com 33 anos, de tuberculose porque era tipógrafo e trabalhava à porta fechada num ambiente em que as tintas naquele tempo deixavam muito a desejar. A minha mãe ficou com 5 filhos nos braços e viu-se na obrigação desesperada de ter que se desfazer deles… para o bem de todos. As mães sempre pensam em nós. Eu fiquei zangado com ela por me ter abandonado e levei muitos anos até compreender que ela tinha toda a razão do Mundo para o fazer. Cada um seguiu o seu caminho. Uma para o Brasil que ainda lá está, outra para França onde também ainda se encontra, outra ainda para Angola e só não ficou lá porque se viu obrigada a ‘retornar’ e eu fui despachado para a Casa Pia. Apenas o meu irmão mais velho ficou com ela porque já trabalhava. Naquele tempo ter filhos era uma garantia de reforma, mas não com crianças nos braços. Ela fez muito bem em ficar com ele porque ele foi o seu amparo para o resto da sua vida. Apesar de tudo, ela decidiu sábiamente. Eu, ao vir para Lisboa, perdi as minhas raízes, não só com a terra como com a família. A minha mãe já morreu e eu só me dou com o meu irmão. Todas as outras irmãs se foram com o tempo e especialmente com a distancia. 
Da Chamusca a Lisboa, naquele tempo eram 120 kms de autocarro com paragem em Santarém e no Cartaxo. Lembro-me perfeitamente do autocarro estar parado no meio da ponte enquanto alguns trabalhadores consertavam uma das traves de madeira que serviam de piso.Eram precisas muitas horas para chegar a Lisboa e era uma aventura tremenda, mas como eu era criança, tudo era novidade. Imaginem agora ao chegar a Lisboa. Na minha terra só havia um homem que tinha automóveis, vários, porque era o dono de quase tudo por lá. E o autocarro onde eu vinha entrou por Sacavém e percorreu toda a Avenida Almirante Reis quase até ao Martim Moniz onde se situava a Garagem e fim de viagem. Foi a partir daqui que a minha memória começou a escrever um diário… diariamente. Os milhares de cavalos puxando carroças à mistura com muitos automóveis, os ardinas gritando e carregando pesados alforges com jornais, toda a cidade gritando, buzinando, as varinas apregoando pelas ruas e eu ficando pregado ao chão olhando com os olhos muito abertos sem compreender onde me vinha meter e saltitando para evitar as bostas dos cavalos, assim cheguei à Capital. A minha avó também nunca tinha saído lá da terra mas já trazia o trajeto todo decorado na ponta da língua porque depressa me vejo a entrar pela Rua das Casas de Trabalho como na altura se chamava e eis-me a entrar num mundo completamente diferente de tudo o que eu imaginava. Tinha pela frente o Asilo D. Nuno Álvares Pereira. Lembro-me de atravessar o pequeno jardim e ao entrar sermos recebidos por uma mulher que se mostrou muito simpática. A minha avó devia estar a sentir o tal aperto na garganta que só ela sabia e eu compreendi isso só mais tarde, porque naquele momento eu apenas sentia todas as emoções juntas de estar num mundo diferente.  

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