terça-feira, 5 de novembro de 2013

Saltar o muro no Maria Pia.

Como já disse várias vezes, pular o muro era uma arte e não era para todos. Melhor dizendo não era permitido a todos. Apesar de ser proibido pular o muro, na verdade pulávamos o muro talvez, precisamente por ser proibido. Toda a gente sabe que os mais velhos tinham uma grande influência e autoridade sobre os mais novos. Os mais novos seguiam estas regras porque não tinham capacidade para decidir e atuar sozinhos. Como raramente saíamos de dentro daqueles enormes muros a curiosidade de saber o que havia pela cidade, tão perto de nós mas tão longe de alcançar, durante anos crescia dentro de nós uma curiosidade tão grande que era muito difícil resistir ao apelo da cidade. Eu estou convencido de que saltar o muro era uma prática tão antiga como a própria Instituição. Nenhum animal gosta de estar fechado. Por isso um prisioneiro é capaz de dar a vida por um estratagema de fuga, por muito ténue que seja. Então a coisa fazia-se mais ou menos assim. Todos os rapazes mais velhos saltavam o muro para se embrenharem na cidade, cada um com os seus motivos. Uns porque queriam ver a família, outros porque queriam ir ao cinema, alguns já frequentavam o putedo do Bairro Alto e até havia quem quisesse vir cá fora só para apanhar ar, especialmente aqueles que não tinham família, o que era a grande maioria. Saltava-se o muro em grupos de poucos alunos que normalmente levavam um ou dois alunos mais novos. Porque os mais novos não sabiam andar sós na cidade, estes eram protegidos pelos mais velhos que não os largavam por nada. E assim aprendíamos a conhecer a cidade. Perto da Padaria e ao lado da Serralharia havia um portão de ferro que estava sempre fechado. Este era o lugar mais fácil para os iniciados. Na parte de dentro havia uma pequena central eletrica que era fácil subir para o seu telhado. Uma vez ali em cima tinha-se uma ótima vista sobre toda a área que nos permitia  descer agarrados aos ferros do portão e à pedra dos lados, em plena segurança. Saltei por lá milhares de vezes mas uma vez quando vinha a descer já do lado de fora, estava um preceptor para me ajudar a descer. Logo por azar tinha que passar alguém por um local deserto e não podia ser outro senão um preceptor. Por vezes também havia azares. Naquele tampo não havia prédios em frente, era um terreno baldio e apenas a linha dos eléctricos  passava por ali, mas de longe a longe. Mas se era difícil sair, o mais dificil era entrar. Tínhamos que arranjar muitos estratagemas para conseguirmos entrar e o mais fácil era mesmo pelo portão principal. Bastava conseguir distrair o porteiro ou arranjar uma manobra de diversão. Para toda esta odisseia quase sempre ficávamos sem jantar. Como se comia cedo e tempo era coisa que não tínhamos muito para percorrer a cidade é claro que chegávamos sempre depois do jantar e havia ainda o fato e ao entrarmos depois do anoitecer facilitava muito a entrada. Se já era muito divicil aguentar a fome durante tantas horas do jantar ao pequeno almoço, agora imaginem o que não era passar sem jantar. Mas o salto valia tudo. Levávamos toda a semana a imaginar e a preparar o salto para o domingo, porque durante a semana faltar às aulas ou à oficina ainda se dava um jeito o pior eram as formaturas que eram religiosamente controladas. Quando faltava alguém, depressa se dada pela sua falta. Quanto mais não fosse havia os bufos (que eram muitos) ou alguém que se aproveitava para se vingar de outro. Eu cheguei a dar o salto só para ir tomar banho à Praia de Pedrouços (onde aprendi a nadar) só porque, na nossa cabeça, não havia outra mais perto. Foram as primeiras grandes caminhadas da minha vida. Alguém consegue imaginar o que é atravessar toda a cidade de Xabregas até Pedrouços? E voltar para trás. 

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