segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Rezar o Terço na Casa Pia:

A vida religiosa na Casa Pia era uma obrigação. Embora não fosse completamente controlada pelos padres, estes tinham uma grande influência dentro do asilo. Havia aulas de Religião e Moral. Éramos obrigados a ir à missa todos os domingos e o pior é que no mês de maio e de outubro tinhamos que ir rezar o terço todos os dias à tardinha na Igreja da Madre de Deus. Entrávamos por um portão de ferro que estava sempre fechado. Só por aqui passávamos quando nos levavam para a igreja. Seguiamos por corredores e escadas e íamos entrar directamente na igreja. A igreja estava sempre aberta ao público mas nós enchiamos de tal maneira que poucas pessoas conseguiam entrar. A entrada era controlada de maneira que nós não tivessemos qualquer contacto nem físico nem verbal com pessoas de fora. Parece que estavam sempre com medo de qualquer coisa, o que era não sabiamos. Talvez tivessem medo que fugissemos porta fora. Talvez tivessem medo que fossemos desencaminhados. Não acredito muito nisto porque saltar o muro era relativamente fácil. O que eu acredito é que por estarmos expostos ao público eles tinham que dar a impressão de nos protegerem. O ir rezar o terço a uma igreja tão importante dava ao asilo uma nota positiva perante o público. Para nós era uma tremenda seca. Mas não havia como escapar. Éramos excessivamente controlados. Assim, já que não havia nada a fazer era preciso arranjar maneira de tornar a coisa menos aborrecida. Nós já sabiamos toda a lenga-lenga de cor e salteado.A solução era um bocado difícil por falta de material, mas era engenhosa. Todos nós tinhamos um livro com orações e outras coisas do género para seguir a missa ou o terço. Então quase todos nós tinhamos um livro de banda desenhada que naquele tempo se chamava 'livro aos quadradinhos', que era colocado dentro do livro de orações e assim nos distraíamos com aventuras que nos transportavam no imaginário das histórias. Naquele tempo a banda desenhada era muito rara e muito difícil de arranjar, porque não era acessível às nossas bolsas. Aliás, nem bolsas nós tinhamos. Mas sempre se arranjavam algumas que eram religiosamente guardadas e lidas por todos, passando de mão em mão. A grande maioria dos alunos não tinha família mas os poucos que tinham estavam sempre a pedir banda desenhada. O problema é que as famílias era tudo gente muito pobre o que tornava quase sempre impossível adquirir as tais histórias aos quadradinhos. As poucas revistas que por lá apareciam eram tão velhas tão velhas que havia ocasiões que em toda a igreja cada aluno só tinha um folha rasgada para se entreter. Alguns nem uma folha tinham.

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