sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A Divisão dos Pães na Casa Pia:

Como já vimos noutras histórias anteriores, o pão era a base da alimentação na Casa Pia. Era também o princípio da discórdia pois grande parte das discussões começavam por causa dele. Não admira pois já diz o ditado: "Casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão". Na realidade comíamos muito pouco pão. Aliás, comíamos pouco de tudo. E muitas coisas nem sequer as víamos, como por exemplo o leite. Nunca bebi leite na Casa Pia, à excepção dos últimos tempos depois de o Governo passar a controlar a Casa Pia, devido à roubalheira descarada dos seus empregados. Durante muito tempo eu fui ajudante voluntário do encarregado do depósito do pão. Este encarregado também já tinha sido aluno e era um dos tais que não tinha capacidade para se governar sósinho pelo que ficou lá dentro trabalhando. Ao tornar-me seu amigo
eu aliviava-lhe as costas e ele recompensava-me com um pedaço de pão. Era um acordo de sobrevivência. Eu tinha que carregar o pão da padaria para o depósito que devia ficar a mais de 300 metros. Depois era preciso cortar o pão de maneira que chegasse ao refeitório pronto para ser distribuído pelos alunos. Ao pequeno almoço, um pão como o da foto acima era cortado em quatro partes a que dávamos o nome de "um quarto". Ao almoço e ao jantar o mesmo pão era agora cortado em 8 partes. Demasiado pequeno para as energias gastas por uma criança. Para cortar o pão utilizávamos a faca do bacalhau que estava pregada à mesa, porque era mais rápido que a faca. Foi uma invenção minha que me facilitou entrada no depósito. Normalmente ao pequeno almoço além do pão tinhamos umas papas de milho que só a fome nos fazia comê-las pois nem sequer eram feitas com leite ou açúcar. As papas eram apenas cozidas em água. Assim uma espécie de "xerém" sem nada. O Xerém é um prato típico de Olhão onde eu vivo. Xerém com Conquilhas é o prato favorito da minha mulher que é natural daqui, mas eu não consigo comê-lo não porque não goste, mas porque lhe tenho raiva. E além do pão e das papas serviam-nos um copo de uma água suja a que chamávam café. A cor era disfarçada pela adição de leite em pó, muito em voga naquele tempo, mas tão fraquinho que se tornava repugnante. Também não bebo café. De pequeno almoço às 8 da manhã era tudo. Só voltaríamos a comer ao almoço que era composta por dois 'caços' muito pequenos de sopa. Para quem não sabe um 'caço' é o mesmo que uma concha, só que o 'caço' tem a pega direita e a concha tem a pega inclinada. O 'caço' é mais um utensílio de cozinha, mais próprio para ir até ao fundo de uma panela. A concha é um utensílio de sala, mais próprio para servir sopa de uma terrina. Mas era um 'caço' que nós utilizávamos para servir a sopa. Na gíria do asilo um 'caço' também significava um 'murro', ou um 'soco'. O refeitório era composto por mesas de pedra com 18 alunos cada mesas. Nove de cada lado. Em cada mesa havia um chefe, que se sentava sempre ao meio da mesa. Era ele quem distribuía a comida por todos os 18 que vinha da cozinha em travessas ou terrinas religiosamente medidos ou contados. Toda a loiça por nós utilizada era de aluminio já muito amachucada. O almoço era quase sempre peixe cozido. Em culinária, o peixe cozido é o prato mais fácil e que menos trabalho dá além de não precisar de muita atenção. Por isso era o prato típico da Casa Pia. Vinha da cozinha uma travessa com 18 postas de chicharro, era quase sempre chicharro, só mudava em dias de festa. Vinha outra travessa com 18 batatas cozidas. E vinha também uma tigela com azeite e vinagre já misturado. O chefe de mesa tinha que distribuir por todos uma posta de peixe, uma batata e uma colher de azeite. Se se alargasse um pouco mais era ele que se lixava visto que era sempre o último a ser servido. Mas lá diz o ditado "Quem parte e reparte fica sempre com a maior parte". Era aqui que todos os dias se arranjavam problemas. Porque me deste a posta mais pequena ou porque o azeite só tinha vinagre ou por outra coisa qualquer todos os dias havia zaragatas. Mas as zaragatas só se manifestavam no recreio. Dentro do refeitório ninguém abria bico, porque quem o fizesse ía imediatamente lavar pratos, tivesse ou não razão. Era assim que os preceptores impunham a disciplina. Ao almoço era ainda distribuído um 1/8 de pão e duas vezes por semana tinhamos um pero ou uma maçã, como lhe quizerem chamar. Nunca me lembro de ter comido outra fruta diferente. E de almoço era tudo. O jantar era igual, sem fruta. Só que ao jantar era quase sempre um guisado de vaca ou semelhante. Assim comíamos durante anos e anos. Só mudava em dias de festa. Mas atenção que as mudanças eram mais para os olhos do que para a barriga. Em vez de chicharro cozido tínhamos peixe-espada frito, em vez da maçã tínhamos uma pêra. Alguns rebuçados cujos papéis de celofane eram maiores que o próprio doce eram colocados dentro de cada prato antes de entrármos no refeitório. É claro que as coisas melhoravam um pouco mais se houvesse alguma personalidade importante a visitar as instalações do asilo. Mas de uma maneira geral era assim que nos alimentávamos. Isto era o que o asilo nos dava, porque depois havia uma guerra diária de mil e um estratagemas a aplicar por todos nós para arranjar algum suplemento.

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