quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A Banda Desenhada na Casa Pia:

A Banda Desenhada foi o meu principal professor. Atravéz dela aprendi a ler melhor. Posso mesmo dizer que a BD era a única maneira de absorver um pouco da miserável cultura que durante os 10 anos de Casa Pia esta me proporcionou. Recordo-me muito bem que quando pegava num livro de BD eu entrava noutro mundo. Normalmente ía para o mundo das histórias. A minha preferida era o Flash Gordon e o Buck Rogers de Alex Raymond (1909-1956) que era o seu autor. Eram aventuras de ficção cientifica. Entrava num mundo completamente diferente. Tudo era irreal e fascinante. Já naquele tempo eu tinha prefeita noção do que era real e do que não era. Mas isso não impedia que eu me deixasse levar para mundos diferentes e fantásticos. Depois vinha o Tarzan. O admirável mundo das selvas e animais selvagens prendia-me completamente a atenção. Eu até sabia que as histórias eram escritas por Edgard Rice Burroughs (1875-1950) e que o nome vinha da sua quinta que se chamava Tarzana. Depois vinha o Fantasma, criatura muito misteriosa e o Mandrake, o mágico que encantava com os seus truques, ambos de Lee Falk (1911-1999). Enfim, os heróis eram tantos e estavam sempre a aparecer outros novos. O grande problema era conseguir arranjar revistas de BD. Problema porque não tínhamos dinheiro e a Casa Pia era tão fechada a leituras que até o jornal velho do sr. director, quando o deitava fora já havia muitos alunos a disputar as suas folhas. Mas havia algumas artimanhas para se conseguir alguma BD. Uma delas era nos Restauradores. Chegávamos a saltar o muro do asilo e ir a pé até à Baixa de Lisboa, ainda é um bom esticão, só para conseguirmos a BD. Junto ao Cinema Eden, nos Restauradores, há um beco sem saída onde um certo individuo tinha uma banca no chão só de BD e cromos. Os cromos, só muito mais tarde, quando apareceu As Raças Humanas é que se começou a desenvolver os Cromos de Futebol. A BD era ali vendida ou trocada, especialmente trocada, naquele beco. Creio que ainda hoje lá está. A solução era simples. Quantos mais fossemos, melhor, porque na confusão sempre conseguíamos 'gamar' alguma coisa. Usávamos o mesmo sistema noutros quiosques da cidade. Nenhum de nós gostava de fazer aquilo e só fazia isto quem gostava de ler. Mas era a única maneira de lermos alguma BD. As bibliotecas ainda só tinham volumes de clássicos e naquele tempo não nos passava pela cabeça entrar numa. Nem sequer sabíamos o que era uma biblioteca. Na casa Pia não havia nenhuma e se havia eu nunca vi. Um belo dia enganei-me e roubei um livro pensando que era BD e saiu-me o Miguel Strogoff de Julio Verne (1828-1905). Tinha descoberto os romances. Creio que foi o primeiro romance que li na vida. Mais tarde, ainda na Casa Pia consegui ler O Crime do Padre Amaro, livro proíbido na altura e que voltaria a lê-lo na Guiné, ainda proíbido. Creio que não devia haver no Maria Pia aluno que não tivesse lido este livro, mesmo os que não gostavam de ler. Voltando à BD, eu arranjei outra maneira de ler BD. Na Casa Pia sempre houve alguns empregados que por diversas circunstâncias não conseguiam sair da instituição. E como a instituição não tinha outra forma de resolver o problema estes passavam de alunos a empregados. Um desses empregados, que por sinal era surdo-mudo, havia muitos na Casa Pia, era um óptimo sapateiro mas muito reservado. Tão reservado que era quase impossível falar com ele. Estava sempre sózinho e não ligava a ninguém. Creio que a sua única companhia era a BD. E eu sabia que ele gostava de BD e também sabia que tinha tantos livros que era uma autêntica biblioteca, só que não era fácil chegar até ele. Ele gastava grande parte do seu salário em BD. Comia e dormia dentro, poucas necessidades tinha. Então descobri que havia uma forma, mas levava tempo e paciência. Felizmente eram duas coisas que eu tinha com fartura. O que eu não tinha era dinheiro, mas consegui dar um jeito. Sorrateiramente começei a mostrar-lhe o último número do Cavaleiro Andante ou do Mundo de Aventuras, só eu sei a trabalheira que me dava arranjá-los. Mas fui conseguindo, ele ficava muito entusiasmado quando via nas minhas mãos a última novidade e eu aproveitava para trocar com ele outras revistas. Fiz tudo isto secretamente pois não estava para dividir com outros o meu enorme esforço e assim a nossa amizade durou até eu sair da Casa Pia. Por isso devo à BD uma das maiores alegrias da minha vida. A leitura.

Sem comentários:

Enviar um comentário