sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Os Surdos-Mudos da Casa Pia:

O Decreto n.º 1522, de 21 de Abril de 1915, modifica o regime de aceitação de surdos-mudos na Secção da Casa Pia de Lisboa para esse fim, até aí apenas destinado aos moradores na cidade de Lisboa e define a existência de um semi-internato de 30 lugares em exclusivo para alunos pobres domiciliados em Lisboa e que permite o preenchimento para lugares de internos a candidatos domiciliados noutros distritos do País que não o Porto onde existia instituição congénere. Em 10 de Maio de 1919 a instituição recebe autonomia técnica, financeira e administrativa.
Na Casa Pia de Lisboa, Sousa Carvalho acompanha e dinamiza um conjunto de experiências inovadoras, assumindo-se claramente como um adepto dos "métodos globais". Em 1929, publica Elementos de Ortofonia, que tem como subtítulo "Defeitos da voz e da palavra e o seu tratamento pedagógico nos indivíduos normais e anormais", no qual sustenta que "as perturbações de pronúncia colocam o indivíduo não só em manifesta inferioridade social e em atraso intelectual, como afectam quase sempre o seu carácter" (1929, p. 281). Por isso, "os defeituosos da pronúncia têm o direito de exigir do Estado um pouco da sua atenção para um assunto que há muito vem preocupando quase todos os países" (1929, p. 283).
Os Surdos-Mudos na Casa Pia faziam parte do nosso quotidiano. Os falantes não se davam muito bem com os surdos-mudos nem os surdos-mudos com os falantes. Mas tudo isto tinha uma razão de ser. Os surdos-mudos eram uma minoria embora fossem muitos. O ensino especial para eles era muito fraquinho. Quase que só os ensinavam a saber escrever e pouco mais. Os precetores, os professores e o pessoal do asilo tratavam tudo por igual. Não sabiam lidar com eles. Posso até dizer que os alunos falantes ainda eram quem melhor sabia lidar com eles apesar das desavenças. Quase todos nós sabiamos a linguagem gestual porque todos nós viviamos juntos e as crianças têm o dom de se adaptar e aprender tudo com relativa facilidade. Porque não conseguiam ouvir nem falar eram muito desconfiados visto que nunca sabiam o que se estava a dizer e porque todos éramos crianças as troças e brincadeiras eram constantes ao ponto de nos pegarmos. Os funcionários do asilo não sabiam a linguagem gestual excepto os professores deles mesmo assim só esses é que sabiam de maneira que quando era preciso qualquer coisa era a nós que recorriam e como nós tinhamos a faca e o queijo nas mãos moldavamos sempre a situação a nosso favor deixando-os furiosos. Por aqui se vê que as suas vidas no asilo eram muito mais complicadas. Se as nossas já eram más agora imaginem as deles.Por isso os surdos-mudos dentro do asilo eram uma minoria completamente isolada e triste. Até na igreja eles eram discriminados. Como não falavam nem ouviam a igreja recusava-se a ouvi-los em confissão mas obrigavam-nos a ir à missa como todos nós. Nós ainda 'sentíamos' o ambiente da igreja mas eles nem isso. Quando chegava a altura de sair da Casa Pia os surdos-mudos estavam melhor preparados para enfrentar a vida civil do que nós embora também tivessem muitas dificuldades. Mas tinham um método diferente. Enquanto nós podiamos ser completamente independentes desde que arranjassemos um emprego eles procuravam sempre o apoio de outros surdos-mudos que já viviam cá fora hà mais tempo. Formavam um comunidade que se ajudava mutuamente. Além disso, antes de saírem do asilo, eles procuravam especializar-se ao máximo nos seus ofícios. Sabiam que tinham que ser melhores para poderem sobreviver. Nós não ligavamos muito a isso. Alguns não ligavam, mas eu aprendi isso com os surdos-mudos. Por isso me apliquei na Escola de Hotelaria que vinha aí...

Sem comentários:

Enviar um comentário