quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Querer Estudar na Casa Pia:

Quando eu tinha uns cinco anos deve ter sido por essa altura que começei a querer aprender a ler. Tanto que consegui ir aprendendo mesmo sem ir à escola. O meu irmão tinha uma madrinha que era "ama". E cuidava de uma catrefa de miúdos para amealhar mais uns cobres. A Dª Fernanda, era a sua graça, tinha por marido um homem conhecido por "Pichelau", era a sua alcunha, mas para nós era o Sr. Manel. Eram duas pessoas com um coração do tamanho do mundo. Estas duas pessoas sempre me encentivaram a aprender a ler e escrever. Não se limitavam a encorajar-me. Eles começaram a ensinar-me. Como a Dª Fernando tinha uma espécie de "creche", cuidava de crianças de várias idades, eu era mais um. Para entreter aquela malta toda e também para os conseguir manter ocupados ela ensinava toda a gente a ler e escrever com a ajuda do marido. Eu nunca andei na 1ª classe. Eu era filho da rua, embora tivesse família não era fácil controlarem-me, quanto mais tempo passasse nas ruas menos incomodava em casa. Mas eu tinha um fraco pela casa da Dª Fernanda. Eu não fazia parte da sua "creche". Eu era apenas um amigo e irmão do seu afilhado. Lá, eu acalmava porque gostava de aprender. Então começei a passar lá muito tempo. Mas éramos muito pobres. O meu pai morreu com 33 anos devido a tubercolose arranjada numa oficina de tipografia. O meu pai era compositor-tipógrafo e trabalhava à porta fechada como todos os outros. Naquele tempo as tintas eram muito tóxicas e só depois de morrer o 3º é que foi permitido abrir as janelas. A minha mãe viu-se com 5 filhos nos braços e teve que se desfazer deles. Três deles foram aprefilhados por outras pessoas da família. Só restámos dois. O meu irmão era o mais velho e já trabalhava na mesma tipografia onde passou toda a vida. Como a mim ninguém me queria porque era um vadio, resolveram meter-me na Casa Pia. Eu tinha a condição principal para entrar na Casa Pia. Era órfão. Naquele tempo a Casa Pia era só para órfãos. Com as "cunhas" certas eu consegui entrar. E quando lá entrei perguntaram-me em que classe andava lá na terra. Como eu não era parvo e já sabia ler mais ou menos disse logo que andava na 2ª classe. E na 2ª classe me colocaram. Por isso nunca andei na 1ª classe. Mesmo assim eu já ía atrazado e não chumbando nenhum ano até à 4ª classe quando lá cheguei já não tinha idade para ir para Asilo Pina Manique, que era a única hipótse de continuar a estudar e fui parar ao Asilo Maria Pia onde só se aprendiam profissões de "ferrugem", as tais em que se tinha que sujar as mãos. Durante anos revolvi tudo para continuar a estudar e nada. Depois da 4ª classe ainda podiamos estudar mais dois anos. Chamavam-lhe Curso Complementar Primário. Eu também o fiz mas não servia de nada. Não tinha equivalência para nada. Mesmo quando fui para a tropa, numa altura em que o País estava em guerra e eram precisos muitos quadros superiores tudo era facilitado mas o meu curso não era conhecido e por isso não tinha qualquer validade. Foi quando compreendi que nos mantinham naquele curso apenas para nos manterem ocupados. Falei com toda a gente dentro da Casa Pia e ninguém estava disposto a deixar-me estudar. Todos me escorraçavam e cheguei mesmo a levar alguns pontapés no cú para se verem livres de mim. Um dia meti na cabeça que se eu podesse ser transferido para o Pina Manique então lá eu poderia estudar. Mas era impossível. Ninguém parecia interessado. Hoje cheguei à conclusão de que nunca falei com as pessoas certas o que não admira porque os verdadeiros chefes nós nunca os víamos nem sabiamos que eles existiam. Para nós só havia um director e que nós pensávamos que era o mais alto cargo dentro do asilo afinal não passava apenas de um chefe de serviços. Só muitos anos mais tarde é que vim a saber o que era um Provedor. É que nós nunca o víamos. Entrava de carro, enfiava-se no gabinete fora da nossa zona de circulação e saía de carro. O seu carro era o único automóvel que entrava dentro do Maria Pia. Mas mantinham-no sempre fora do nosso alcance mas não da nossa vista pelo que era muito apreciado por nós porque era um motivo de mistério. Naquele tempo automóveis não faziam parte da nossa visão. O máximo era a camioneta que trazia os víveres do mercado ou o velho autocarro. Nada mais. Das poucas janelas que davam para a rua pouco se via porque naquele tempo imperavam as carroças e cavalos, raramente se via um automóvel. O tempo foi passando e eu não conseguia estudar de maneira nenhuma. Até que um dia abriu em Lisboa a primeira Escola Hoteleira...

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